Eles fazem sorrir
*Flávio Gomes
Se o seu carrão pifar no meio da rua, ou numa estrada no fim do mundo, ninguém vai parar para te ajudar. E se alguém se aproximar, você vai achar que é ladrão. Se um dos meus estancar no meio da avenida mais movimentada de São Paulo, vem um monte de gente para empurrar. E é o pai de um que teve um igual ao meu, o tio do outro que dirigia um táxi idêntico, a avó de um terceiro que ainda tem o seu guardado na garagem que só usa para ir à feira, e se eu não souber o que fazer para ele pegar de novo, alguém saberá.
Meu kit de sobrevivência nas ruas é barato. Um joguinho de ferramentas, desses que se compram em camelôs, com uma chave de fenda, um alicate, algumas chaves de boca. Um frasco com gasolina para jogar no carburador de vez em quando, um galão de água para refrescar o radiador. Oh, que coisa mais primitiva, dirá você.
OK. Tenha uma pane no seu carrão eletrônico para ver o que acontece. Nem tente abrir o capô. Você não sabe o que tem lá dentro. Cuidado, ele pode te engolir. Torça para o celular estar com o sinal pleno e chame um guincho, a seguradora, o papa. Sente e espere. Seu carrão só vai funcionar de novo quando conectarem um laptop nele. E prepare o talão de cheques.
Meus carros, não. Têm carburadores, distribuidores, diafragmas, bobinas e velas, tudo à vista. Sei quando o piripaque é na bomba de gasolina. Sei quando é sujeira da gasolina. Sei assoprar um giclê. Aliás, sei onde fica o giclê. Procure algo parecido na sua injeção eletrônica.
Seu carro é um emérito desconhecido sem história ou currículo. Os meus têm 40 anos ou mais, já passaram por muita coisa nessa vida, e quando saíram de uma concessionária, décadas atrás, estacionaram na garagem em forma de sonho realizado. Carro fazia parte da família, antigamente.
Destaques dos classificados
Ah, mas o meu tem ar-condicionado, disqueteira e controle de tração, dirá você. Sim, mas você nunca terá o prazer de dirigir de vidros abertos e cotovelo para fora da janela, meu rádio toca as mesmas músicas, e não me faça rir com o seu controle de tração. Quantas vezes ele foi necessário?
Além do mais, existe um negócio chamado prazer. Prazer de ter algo que lhe é caro e precioso, mesmo que não valha muita coisa. Carros iguais ao seu todo mundo tem. Vejo aos milhares todos os dias, e nenhum deles tem a cara do dono. Os meus têm. E quando eles quebram, eu mesmo conserto. E eles me agradecem andando de novo, fazendo com que as pessoas sorriam quando passam, fazendo barulho e soltando fumaça.
Não há nada como um automóvel que faça alguém sorrir.
[box type=”shadow” ]Flavio Gomes é jornalista e escritor. Atualmente cobre Fórmula 1 para 12 jornais brasileiros e é também comentarista e repórter da Fox Esporte. Está no iG, com o site “Grande Prêmio”. Quando fala de carros, começa sempre por sua verdadeira paixão: os DKWs e Volkswagens de sua coleção.É com eles que roda pelas ruas de São Paulo. Crônica publicada originalmente na revista 4 Rodas e getilmente cedida por Flávio Gomes ao Portal Maxicar.[/box]
CADASTRE SEU WHATSAPP PARA RECEBER.
Deixe seu comentário!