Repórter Maxicar

GT Malzoni II: Resgate de um elo (quase) perdido

GT Malzoni II
Restauração levou quatro anos

Com exclusividade, a história da descoberta e o passo-a-passo da restauração do primeiro GT Malzoni criado por Rino Malzoni, para a Equipe DKW

Foi no dia 11 de novembro de 2006 que André Valente nos ligou. Havia recebido do cliente e amigo Francisco Malzoni — o Kiko — uma incumbência extremamente desafiadora: restaurar o protótipo GT Malzoni II 1963, criado por Rino e que foi o embrião de uma história de sucesso que culminou, anos mais tarde, no desenvolvimento do Puma, o esportivo brasileiro de maior sucesso em sua “geração”.

Fomos até a oficina de André — a AMV Restaurações — para ver o carro de perto. Havia acabado de chegar. Combinamos que todo o processo de restauração seria acompanhado pelo Portal Maxicar, e após concluído, se transformaria nesta reportagem que agora você acompanha. Foram 18 seções de fotos, ao longo de pouco mais de 4 anos. Sempre que havia algum progresso, íamos nós até lá registrar.

O carro chegou a Petrópolis completamente desfigurado

Valente recebeu um carro literalmente irreconhecível, que em nada lembrava o Malzoni nº 10 pilotado por Mário César de Camargo Filho — o Marinho. Durante os cerca de 40 anos em que o bólido ficou desaparecido, sofreu (literalmente) inúmeras modificações com o claro objetivo torna-lo algo o mais parecido possível com um Puma VW — na base de muito improviso e quilos e mais quilos de massa plástica! Para começar, foi pintado de amarelo. Na dianteira, um parachoque de Fusca foi incorporado à carroceria de aço, para dar um formato mais arredondado. Sob o pseudo-parachoque, uma pequena entrada de ar, para ajudar na refrigeração do motor, já que a mecânica original DKW instalada na dianteira permaneceu. A traseira original arredondada (marca registrada deste protótipo) deu lugar a uma mais reta, com vidro plano, sempre com a intenção de fazer o Malzoni se transformar num Puma dos anos 1970. A alavanca de câmbio, originalmente no assoalho, havia sido transferida para a coluna de direção, como dos DKWs convencionais.

Mas com muito trabalho e profissionalismo o desafio foi vencido!

A história do GT Malzoni II

A vida não andava muito fácil para a Equipe DKW-Vemag naquela época, apesar das muitas vitórias. Após o lançamento do Interlagos, em 1962, a Equipe Willys, sua principal rival, começou a incomodar. Também pudera! Versão nacional do francês Alpine A106, os Interlagos Berlinetta eram levíssimos (cerca de 500 quilos), devido à carroceria fabricada em fibra de vidro, o que conferia aos pequenos esportivos uma incrível relação peso-potência (apesar de utilizarem basicamente o mesmo motor Renault do Gordini, só que com “cavalaria” adicional), fazendo com que passassem a vencer provas seguidamente. E para piorar a situação da turma dos DKWs, neste ano a Willys contava com ases como Luiz Pereira Bueno, Wilsinho Fittipaldi, José Carlos Pace e Rodolfo Costa. Bird Clemente só passaria a integrar o time a partir do finalzinho daquele ano.

Rino Malzoni e o protótipo com layout de pista. No detalhe,  já transformado em automóvel de rua


Enquanto isso, para fazer frente, a equipe chefiada por Jorge Lettry só podia contar com os pesados e pouco aerodinâmicos sedans Belcar, apesar da incrível preparação que rendia muitos cavalos extras aos motores de 3 cilindros. A Equipe DKW-Vemag precisava urgentemente aliviar o peso, já que o limite daquela mecânica já havia sido alcançado. Necessitavam de algo novo para o ano seguinte, 1964.

Amigo do designer e projetista Rino Malzoni, o piloto Marinho sugeriu a ele a criação de um carro de linhas esportivas, mais leve que o sedan fabricado pela DKW-Vemag, mas que usasse a mesma mecânica.

Malzoni já havia desenvolvido em sua fazenda, localizada em Matão-SP um protótipo coupê 2+2 de rua, tendo como base o mesmo chassi DKW e carroceria de chapas de aço. De acordo com seu filho, Kiko, este carro foi depois dado de presente a um sobrinho e acabou se perdendo.

Rino então deu vida ao protótipo GT Malzoni II, um automóvel de dois lugares, desenvolvido especialmente para as competições, que utilizava chassi DKW encurtado e sua mecânica, com câmbio no assoalho. Também com carroceria de aço, seu acabamento era totalmente espartano. Na Equipe DKW-Vemag, o carro recebeu o Nº 10 e sua estréia nas pistas aconteceu nas Cem Milhas da Guanabara, no Circuito da Barra da Tijuca-RJ. Marinho não conseguiu completar a prova, já que o protótipo debutante apresentou um defeito. Mas conquistou a vitória na Prova Simon Bolivar, realizada em Interlagos, em dezembro de 1964. A carreira do GT Malzoni II foi bastante curta, tendo participado apenas de cerca de 6 corridas naquele ano. O desempenho do carro não foi o esperado. Faltava aliviar o peso e sua carroceria de aço não ajudava isso em nada.

Vitória na Prova Simon Bolivar, de Interlagos, em 1964. Da esquerda para a direita, Marinho, Rino Malzoni e Jorge Lettry


A essa altura, Rino já preparava, por encomenda de Jorge Lettry, três carrocerias do modelo GT Malzoni IV, com levíssima carroceria em fibra de vidro, cujos moldes foram baseados no terceiro protótipo também de aço, com carroceria um tanto diferenciada de seu antecessor, principalmente a traseira.
— Eram carrocerias extremamente finas e leves. Verdadeiras cascas de ovo. Bem diferentes dos Malzonis que foram fabricados depois para as ruas. — nos conta Kiko.

Com a novidade, Marinho e a Equipe DKW-Vemag perderam o interesse pelo antigo protótipo II, que acabou voltando às mãos de Rino. Ele o transformou em um esportivo de rua, refazendo o interior, instalando parachoques, rodas raiadas e dando a ele uma nova pintura. Posteriormente, foi vendido a Francisco Lameirão, também piloto da equipe de Marinho. O destino do carro desde então permanece um mistério. Nem Marinho, nem Kiko sabem onde ele foi parar.

O resgate

Kiko Malzoni

Há alguns anos, Kiko Malzoni assumiu a missão pessoal de resgatar os modelos criados por Rino.
— Meu pai nunca criou automóveis com a intenção de ganhar dinheiro. Era fazendeiro e tinha essa atividade como um hobby. Fazia pelo puro prazer de fazer. Tanto que quase todos os carros idealizados por ele foram pensados para seu uso pessoal a princípio. A única exceção é o FNM Onça que foi um projeto encomendado pela Fábrica Nacional de Motores, na época administrada pelos Militares.

Kiko tem hoje uma coleção que inclui GT Malzoni IV, Puma DKW, Puma Volkswagen, além do raríssimo Puma 4R, cuja produção foi de somente 4 unidades, sorteadas entre os assinantes da 4 Rodas em 1970, para comemorar os 10 anos da revista. E a idéia de encontrar o protótipo GT Malzoni II já estava em sua intenções, pois acreditava que o esportivo não havia se perdido. Ele só não sabia por onde começar a sua busca.

Um dia, em meados de 2006, um entusiasta da marca DKW, morador de São Paulo e conhecido de Kiko, descobriu num ferro velho (não de automóveis, mas de velharias em geral) de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, aquele estranho automóvel amarelo que lembrava um Puma VW, mas no entanto tinha carroceria de chapas de aço e mecânica DKW. Observando mais atentamente os detalhes, ele constatou tratar-se do GT Malzoni II. Seu painel de instrumentos igual ao do DKW Fissore e o desenho do vidro traseiro panorâmico escondido em meio a soldas e remendos na carroceria modificada, foram as provas de que estava ali o carro Nº 10 do Marinho, desaparecido há mais de 40 anos.

A restauração

André Valente foi o responsável pela restauração do GT Malzoni II


Como já dissemos no início dessa reportagem, o GT Malzoni II chegou à AMV — oficina de restauração de Petrópolis-RJ pertencente a André Valente — no dia 11 de novembro daquele mesmo ano. Especialista nos automóveis da marca Puma e seu similares — tendo sido o responsável pela restauração dos outros automóveis da coleção de Kiko Malzoni, inclusive o Puma 4R citado acima — Valente tinha diante de si um verdadeiro exercício de superação. Além de estar totalmente modificado, as referências praticamente inexistiam a respeito daquele exemplar único. Todo o trabalho para se chegar às medidas originais exatas, tanto da frente, quanto da traseira, foi baseado somente em poucas imagens de baixa qualidade existentes na internet e em publicações de época. Afinal, aquele protótipo tinha frequentado pouco as pistas.
— Quando a comunidade fã da marca DKW soube que o Malzoni II estava aqui para restaurarmos, houve uma grande mobilização. Todos queriam colaborar com informações e imagens do carro, para nos ajudar. Achei muito bacana essa união em torno da causa — lembra André.

André recorda-se também da decisiva participação de seu pai, Vicente, então seu braço direito na AMV Restaurações. Foi de autoria dele os gabaritos e moldes que devolveram ao carro o seu aspecto original. Seu Vicente morreu vítima de câncer em junho de 2009.
— Ele teria muito orgulho e alegria em ver o resultado de tanto trabalho. É uma grande pena ele não estar aqui para admirar a obra pronta!

O GT Malzoni II teve sua restauração concluída em fevereiro de 2011. Valente considera a parte mais difícil da restauração, não a dificuldade de informações, mas sim a falta de mão de obra. Segundo ele, bons profissionais, que saibam realmente trabalhar o metal, estão em franca extinção. Houve dificuldades também em relação à mecânica, já que hoje poucos conhecem os segredos do motor 2 tempos e 3 cilindros da extinta marca alemã.
— Considero esse o melhor trabalho de restauração já realizado por André Valente. As informações eram praticamente nulas. No entanto, ele conseguiu resgatar a originalidade do carro em seus mínimos detalhes. Basta ver as raras imagens da época — comemora o orgulhoso Kiko Malzoni.

— O Kiko era um menino que eu carregava nos meus ombros naquela época. Acho excelente a iniciativa dele em conduzir esse projeto da restauração, não só pelo que o GT Malzoni representou, mas principalmente por resgatar a obra do Rino, meu grande amigo, com quem dividi momentos especiais, tanto na fazenda Chimbó — onde ele se envolveu totalmente para realizar o sonho de construir o Malzoni — quanto nas pistas, vivendo os resultados dos “filhos” dele. – relembra Marinho.

Todo o processo de restauração foi acompanhado do princípio ao fim pela equipe do Maxicar


A história do resgate e restauração deste verdadeiro elo (quase) perdido dos primórdios do automobilismo nacional e também da própria indústria automobilística brasileira, fará parte de um livro a ser lançado ainda este ano pela Editora Alaúde. Sob responsabilidade de Bob Sharp e Jorge Medetisch, a obra sobre Rino Malzoni e seus contemporâneos, fará um retrato daqueles longínquos anos 1960, quando criatividade e intuição eram as principais ferramentas de quem se aventurava a trabalhar com automóveis.

— Meu pai teve um papel nessa história que considero bastante relevante. Ele criou alguns modelos que se tornaram sucesso, o maior deles indiscutivelmente é o Puma Volkswagen, com uma produção de quase 20 mil unidades, inclusive com exportações para vários países. E esse protótipo único GT Malzoni II faz parte desse projeto amplo, que é não o de apenas restaurar os seus carros, mas o de resgatar a sua trajetória — nos conta Kiko.


Texto, fotos e clipe: Fernando Barenco
Agradecimentos: a André Valente, Kiko Malzoni e Marinho

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