Colunista Convidado

Meu primeiro carro

Meu primeiro carro

*Carlos Zarur

[dropcap]L[/dropcap]á na Gávea, no Rio de Janeiro, de onde saí ainda menino para vir morar em Brasília, havia alguns carros memoráveis. A rua de paralelepípedos era sombreada pelos oitis e pelas casas grandes com seus quintais de pomares inesquecíveis.

Bem em frente da minha casa, jogávamos bola em uma pequena vila, até não enxergarmos mais, pois não existiam muitos postes de luz e os poucos tinham uma claridade amarela, meio mágica, que testemunhava nossas brincadeiras – as festas de São João e os primeiros namoricos. Ali na vila, estacionado, desde tempos imemoriais, um Fusca alemão, dos primeiros. Acanhado com seus vidrinhos pequenos. Pneus vazios e janelas quebradas, testemunhos de seu abandono.

Aquele carrinho foi, na minha imaginação de criança, o meu primeiro automóvel. Passava horas e mais horas no seu interior mofado, agarrado na sua direção viajando pelas estradas do mundo, atravessando desertos, vivendo aventuras que só a criatividade das crianças pode tornar realidade. O detonado Fusquinha foi meu companheiro em vários momentos, inclusive nos maus quando procurava o seu interior para espiar alguma dor da alma.

A vila era o nosso campo de futebol. Hoje, quando volto lá, acho tão pequena. Na infância, porém, as dimensões são outras, as proporções são relativas ao nosso diminuto tamanho e, sobretudo, a nossa imaginação. Ali armávamos nossas balizas e jogávamos disputadas peladas com a bola que surgisse no momento: de couro, borracha e até a velha bola de meia. Para nós, a vila era o próprio Maracanã e comemorávamos os gols imitando o barulho da torcida. O velho Fusca ficava de lado e vez ou outra levava uma bolada. Sua lata rangia reclamando.

Durante essas peladas, que eram acompanhadas pelo canto das cigarras, eu sempre ia até o abandonado carrinho de minhas brincadeiras e deixava o meu chiclete no seu velho pneu vazio, pois durante as partidas era muito fácil morder a língua. Com o tempo seus pneus foram ficando coloridos pelos chicletes que grudavam na sua estropiada borracha.

Em 1960 minha mãe foi transferida para Brasília, e lá viemos nós para a nova capital no bojo do entusiasmo de um Brasil memorável – cheio de esperança. Juscelino construía um novo país que, mais do que nunca, acreditava no seu destino. Antes da mudança, porém, vendemos o nosso Chevrolet 51 e logo ao chegarmos compramos um Fusca verde claro, o primeiro carro nacional da família, que andava pelas estradas de poeira vermelha e vivia sujo.

Eu tinha saudades do meu Volkswagen alemão. Quantas viagens fizemos juntos pelo mundo afora, quantas aventuras vivemos na minha imaginação de menino. Eu pensava nele sempre e mesmo depois de adulto continuava lembrando do meu primeiro carro.
O que parecia impossível ocorreu muito tempo depois. Já adulto, com meus cabelos brancos, voltei à rua de minhas peripécias. Fui andando sem rumo em meio a um turbilhão de recordações. Era o moleque levado outra vez. Caminhei reconhecendo os portões, os muros, os cheiros, até a última casa da vila. Lá, bem na minha frente, no fundo de uma garagem, um Fusca alemão antigo impecavelmente restaurado com suas janelinhas pequenas. Seria o meu velho carro de tantas aventuras? Cheguei mais perto e então tive a certeza do reencontro, pois, grudado no pneu, havia um velho chiclete vermelho.

[box type=”shadow” ]*Carlos Zarur é Jornalista, Sócio do VCC-Brasília, proprietário de um Karmann Ghia Conversível 1970 e um Ford 1929, dentre outros. E-mail:carlos@zarur.com.br Visite o web site de Carlos Zarur www.carloszarur.com.br[/box]

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