Colunista Convidado

Miss Universe

Miss Universe

*Flávio Gomes

[dropcap]F[/dropcap]oi em julho de 2010 que “Neide”, como ela se chamava lá em Santa Catarina, me foi oferecida. O dono, um rapaz bacana de nome Francisco, na verdade queria restaurá-la e me procurou para ajudar. Passei todas as informações e fotos de que dispunha. Afinal, era uma 56. Foram feitas 173 unidades de 19 de novembro a 31 de dezembro. Eu só sabia de outras três sobreviventes. É a primeira fornada de carros nacionais da história, posto que, oficialmente, o primeiro automóvel brasileiro fabricado foi justamente uma perua DKW Universal que saiu da linha de montagem da fábrica da Vemag no Ipiranga, no dia 19 de novembro de 1956.

Algumas semanas depois o Chico me ligou de novo. Tinha outros projetos de restauração e não ia conseguir tocar a “Neide” (nunca gostei do nome; sei lá, acho Neide nome de tia chata!). Quer comprar? Querer eu quero, mas quanto?

E aí rolou a negociação de sempre. Na verdade, o valor era alto e eu não tinha. Passei para nossos amigos vemagueiros, mas antes que qualquer um respondesse, o Chico me ligou de novo e disse: tem de ser sua. Baixou o preço, estendeu o prazo de pagamento por meses e eu mandei subir para São Paulo.

No começo de fevereiro de 2011 ela chegou na porta de casa, pintada de marrom e bege. Não estava lá muito linda. Mas estava inteira, completa e sorridente. É um modelo Universal, é uma garota, e por isso, na mesma hora, deixou de ser “Neide” para se transformar na Miss Universe.

Levei lá para a LF, nossa equipe de corrida, raspamos tudo, começamos a descobrir os detalhes, defeitos e qualidades, até chegar a algo que considero essencial: a cor original. Eu ia pintar de bege e vinho, padrão Alemanha. Ou creme e azul marinho. Mas quando arranquei o forro do teto e vi a pintura original, não tinha nem o direito de fazer diferente do que ela era quando saiu da fábrica. Depois, consultando pelo número do chassi uma misteriosa lista à qual só um oráculo de Brasília tem acesso, descobrimos que: 1) ela saiu mesmo de fábrica pintada de Azul Tramandaí (ao menos era o nome da cor, que mais tarde batizou outro tom de azul, bem mais claro) com interior vermelho; 2) era standard, ou seja: sem frisos laterais, sem luxo algum, uma cor apenas (os modelos mais luxuosos tinham duas cores, e não necessariamente saia-e-blusa; muitas saíam com uma espécie de “máscara” em torno das janelas, coisa linda); 3) foi finalizada no dia 26 de novembro de 1956, o décimo carro montado pela Vemag, exatamente uma semana depois de a primeira peruinha ter ficado pronta.

Há uma possibilidade, mas não creio que seja muito concreta, de ser o nacional mais antigo do Brasil. Digo que não creio porque já vi a numeração de outras duas 56 e são mais baixas que a de Miss Universe. Mas é algo que precisa ser confrontado com a Lista de Brasília. Não importa, porém. Ela é linda e, dentro das minhas possibilidades, fiz o mais próximo possível do que era quando veio ao mundo, 57 anos atrás.

Padrão de cores igual à propaganda da versão alemã

Mecânica perfeita, freios ótimos, um escapamento “banjo” que faz um barulhinho encantador, câmbio OK. Consegui as lanternas traseiras quando descobri que eram usadas as mesmas que são instaladas no Land Rover Defender, da Lucas. A luz de placa (tenho fotos de época com apenas uma, à esquerda) é a mesma dos modelos MG dos anos 50. Arrumei um rádio de época que funciona. Fiz a tapeçaria com o excelente Willian, da Modelo, lá perto da USP. Os tecidos (vermelho para bancos e laterais; casemira bege para o teto) eu mesmo fui garimpar lá na Celso Garcia, no Brás. Horas entrando em todas as lojas até encontrar o tom ideal, o padrão mais próximo daquilo que eu imaginava ser o correto. Afinal, não há muitas referências desse carro. Fotos coloridas, nem pensar.

Na Alemanha, achei as rodas — Miss Universe chegou a São Paulo com rodas de Passat. Dois meses atrás, consegui, também na Alemanha, três calotas novas, originais. Vou ter de reproduzir mais uma. Dá-se um jeito. Por dentro, falta um botãozinho no painel e o volante talvez tenha de ser repintado. Nestes meses de oficina, apareceu um defeito na pintura marfim. O limpador de para-brisa não está funcionando ainda. As luzes estão OK. Precisava de três emblemas dificílimos, das laterais e da porta traseira. O Irineu Desgualdo fabricou para mim, artista que é.

    “Tem tanta importância assim, se a luzinha interna é original ou não? Tem. Para quem busca uma restauração legal, ainda que não perfeita, esses detalhes são bacanas.”

Consegui no encontro de Trabants, mês passado em Zwickau, peças preciosas que estava precisando e jamais achei que encontraria lá: maçanetas de porta e janela do IFA F9, que vem a ser o DKW fabricado na Alemanha Oriental. Portanto, originais desse carro, ano e modelo. Novinhas. Baratinhas. Paguei 10 euros o par das maçanetas de porta e 18 o das janelas. De quebra, ainda encontrei a luz interna do IFA alemão. Diferente da que eu conhecia no DKW nacional para esse modelo, mas perfeita para dar o toque final no interior. E vai saber se algumas delas não saíram de fábrica com o modelo alemão? Afinal, as primeiras peruinhas DKW tinham um índice baixo de nacionalização. Como o governo, para considerar um carro “nacional”, exigia um percentual do peso total com peças feitas no Brasil, as fábricas optavam pelo que era mais pesado para fazer por aqui: bloco de motor, rodas, pneus, carcaça de caixa de câmbio, bateria, vidros, essas coisas. Tudo para atingir o peso mínimo exigido para que fosse considerado um carro nacional. Muita coisa vinha de fora, mesmo. Até a carroceria, no caso da 56. E pecinhas. Portanto, é possível que essa luz interna seja igual à que a Vemag usou no início da produção.

MISS UNIVERSE – RESTAURAÇÃO: ANTES E DEPOIS

Tem tanta importância assim, se a luzinha interna é original ou não? Tem. Para quem busca uma restauração legal, ainda que não perfeita (tem algumas que dão até raiva, mas no fundo é admiração pura; eu não tenho grana, tempo e paciência), esses detalhes são bacanas. O embleminha, a lanterna, a calota, o tecido, a maçaneta, a tampa do tanque de gasolina, o rádio, a cor, a roda, tudo isso conta.

Para mim, que sou um bobo, um carro é sempre mais que um carro.Miss Universe está linda. Pode não estar igual, mas certamente está muito parecida com o que era quando sorriu para a vida assim que deixou a linha de montagem da Vemag e viu o sol. Sei lá o que se passou dentro dela nesses quase 57 anos. É um tempão. Fico imaginando, porém. Sempre que estou num dos meus carrinhos, fico pensando naquilo que eles já viveram e no quê viveram aqueles que passaram horas de suas vidas sentados naqueles bancos, olhando o mundo através daquelas janelas, pisando naquele acelerador, trocando marcha naquela alavanca. Fico imaginando as músicas e notícias que saíram por aquele alto-falante, os amores nascidos, os olhares trocados, as buzinadas para as garotas na rua, os narizes das crianças grudados na janela embaçada, as estradas que percorreram, as ruas por onde andaram.

[box type=”shadow” ]*Flavio Gomes é jornalista, dublê de piloto, escritor e professor de Jornalismo na FAAP. Comentarista, apresentador e repórter da ESPN Brasil. É torcedor da Portuguesa e quando fala de carros começa sempre por sua verdadeira paixão: os DKWs e Volkswagens de sua pequena coleção, além de outras coisinhas fabricadas no Leste Europeu. Nas pistas, pilotou de 2003 a 2007 o intrépido DKW #96. Hoje pilota um Lada Laika, o “Meianov. É idealizador do portal Grande Prêmio e mantém um blog que faz enorme sucesso entre os amantes de automóveis e automobilismo.[/box]

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