Os carburadores de São Paulo
*Flavio Gomes
[dropcap]D[/dropcap]ia desses li no blog de um jornalista amigo meu, Fábio Seixas, da “Folha de S.Paulo”, uma deliciosa história sobre o dia em que seu Gordini quebrou numa avenida movimentada de São Paulo. No fim o problema era na tampa do distribuidor, e o episódio todo o levou a descobrir uma lojinha no centro de São Paulo onde o tempo parece ter parado. E a lojinha tinha a peça. Nova, na caixa, guardada há 40 anos.
Fui com uma amiga, que não acreditava naquela estranha obsessão por um carburador. Eu falava dele como se fosse o Santo Graal.
O caso me fez lembrar de história parecida, logo depois de eu comprar minha moto DKW, que foi entregue numa caixa de madeira na casa de meu amigo Luiz Salomão, porque comprei escondido de minha mulher. Como ela não tinha documentos em dia, um outro amigo, que trabalhava num jornal da cidade de onde ela veio, no norte do Paraná, mandou a bichinha de caminhão acompanhada de uma nota fiscal de “peças de rotativa”, para o caso de uma fiscalização indesejada… Pequenas transgressões, mas fiquem tranquilos: a moto já foi devidamente regularizada. Sem esquemas, à custa de muitas buscas por informações na Alemanha, levantamentos em departamentos de trânsito e tudo mais. O esforço vale a pena.
Mas eu falava da moto, e quando ela chegou, fizemos funcionar, e tal. Mas a coitada estava com um carburador fajuto, acho que de uma Suzuki 80 cc ou coisa do gênero. Não sossegaria enquanto não encontrasse um original, e depois de muito pesquisar descobri que ela usava, em 1936, um Dell’Orto assim & assado.
Procurei, procurei, até encontrar loja semelhante à do Fábio, lá mesmo no centro da cidade, numa travessa da avenida São João. Brasimport, o nome da loja. Fui com uma amiga, que não acreditava naquela estranha obsessão por um carburador. Eu falava dele como se fosse o Santo Graal.
A loja tinha armários de madeira de cima a baixo, como aqueles de antigas farmácias, piso de linóleo, duas ou três luminárias lá no alto, um mezanino de onde saía a luz azulada de uma TV em branco e preto. Como na loja do Seixas, computadores e máquinas para passar cartões não faziam parte do cenário, nem da realidade daquele ambiente estranhamente silencioso, apesar do barulho lá fora, Minhocão à vista, ônibus passando, motoqueiros alucinados entregando suas entregas, tudo rápido, ruidoso, urgente. Menos na loja.
Destaques dos classificados
Me atende um senhor que imagino ter sido o único vendedor daquele estabelecimento em todos os tempos. Meio envergonhado, porque às vezes fico com vergonha das minhas maluquices, inicio o diálogo timidamente. “Preciso de um carburador para minha moto”, digo. Eu sabia que ele perguntaria qual era a moto, é claro, e já me preparava para ouvir um “isso não existe mais”, ou “nunca ouvi falar”.
Ele perguntou, como eu previa, e eu respondi. “Uma DKW 1936.” O vendedor ajeitou os óculos, fez cara de quem vendia dez carburadores para motos DKW 1936 por dia, e sugeriu que eu fosse um pouco mais específico. “Cilindrada?”, perguntou, algo impaciente, e eu: “Duzentas e cinquenta”.
Um momentinho, falou, como se fosse aquele o pedido mais normal do mundo. Dirigiu-se a uma gaveta onde estavam guardados, há dois mil anos, catálogos de todas as fábricas de carburadores do universo conhecido. Ainda de costas, e antes de abrir a gaveta, perguntou: “Sport?”.
Sim, era uma 250 cc Sport. Como é que aquele cara sabia que em 1936 havia um modelo de moto DKW Sport?
Ele sabia. Pegou o primeiro catálogo, colocou sobre o balcão, folheou, fez ar de contrariedade, olhou a contracapa e reclamou consigo mesmo. “Este catálogo aqui é muito novo, não vou achar nunca”, censurou-se. Tinha sido impresso em 1954. Voltou com outro, esboçou algo que poderia ser chamado de sorriso, foi direto na página dos Dell’Orto, apontou o dedo e, feliz por ter encontrado o que procurava, decretou, sem demonstrar surpresa ou glória pela descoberta: “É esse aqui”.
Ele perguntou, como eu previa, e eu respondi. “Uma DKW 1936.” O vendedor ajeitou os óculos, fez cara de quem vendia dez carburadores para motos DKW 1936 por dia, e sugeriu que eu fosse um pouco mais específico. “Cilindrada?”, perguntou, algo impaciente, e eu: “Duzentas e cinquenta”.
Que bom. Pelo menos achamos o carburador para a DKW 1936 250cc Sport, o que não era garantia de nada, porque a chance de haver um daqueles naquela loja, por mais otimista que eu fosse, era mínima. “Tem?”, perguntei quase implorando, quase me desculpando por remover tamanho cadáver de sua memória.
“Claro. O senhor quer novo ou usado?”, ele respondeu, um tanto ofendido pela impertinência de minha dúvida.
Comprei o novo. Paguei uma grana, mas comprei o novo. Um Dell’Orto original para a DKW 1936 250 cc Sport.
São Paulo tem dessas coisas. Não sei até quando, mas ainda tem, e é o que me faz dormir tranquilo todas as noites.
[box] * Flavio Gomes é jornalista, dublê de piloto, escritor e professor de Jornalismo. Atua em jornais, revistas, rádio, TV e internet. Gosta de DKWs, Volkswagens e tudo que tenha mais de 30 anos.
Visite: flaviogomes.grandepremio.uol.com.br/
[/box]
CADASTRE SEU WHATSAPP PARA RECEBER.
Deixe seu comentário!