Restaurando o Tempo
*Carlos Eduardo Seixas
[dropcap]A[/dropcap] Bahia tem uma inquestionável vocação para o pioneirismo! Foi palco do “achamento” do Brasil e sua capital – Salvador – a primeira cidade construída e transformada em sede administrativa.
Com o antigomobilismo, infelizmente, a história foi um tanto diferente, apesar do início promissor: acolhemos o quinto carro a rodar em terras brasileiras, um Clément Panhard 1900, importado da França pela família Lanat.
Nas décadas seguintes, ocorreram apenas poucas manifestações de valorização, como a participação do mesmo Panhard no desfile em homenagem aos 400 anos da primeira capital do país (1949).
Na década de 1960 tivemos um grande alento, com o Clube do Automóvel da Bahia a as históricas corridas da Av. Centenário. No início dos anos 70, o declínio, precipitado pela danosa proibição das heróicas corridas de rua. Até hoje não temos sequer um autódromo!
Resultados: décadas de lacuna, alguns colecionadores solitários, tímidas iniciativas de resgate e, mais inquietante, uma interminável saída de belos exemplares para outros pólos já bastante organizados. Restava-nos a opção de admirar à distância ou aproveitar possíveis viagens para visitar Clubes e Museus nos mais variados endereços o país. Até o mencionado Panhard quase sucumbe ao abandono, após uma desastrada consignação ao Museu de Tecnologia.
Mas o DNA do verdadeiro antigomobilista não resiste a uma boa restauração e finalmente as iniciativas foram, pouco a pouco, alinhadas e reunidas. Todos se voltaram ao resgate do tempo perdido e, considerando as forças represadas ao longo dos anos, os avanços têm sido rápidos e notáveis. Os Clubes começaram a aparecer – o do Fusca e do Opala nos anos 90 e o Veteran Car Club do Brasil / Bahia em 2004 – buscando força e inspiração nos verdadeiros ícones da resistência.
Destaques dos classificados
E existe melhor exemplo do que o da família Lanat, que recusou ofertas milionárias pelo carro mais antigo do Brasil, visto os quatro primeiros não terem sido conservados?
“A pequena viatura em madeira armada, acionada por um motor quase horizontal de um cilindro (797cm³), refrigerado a água e situado na traseira do veículo, transmissão por corrente e direção rabo de vaca” – na definição de seu projetista, Eng. Arthur Krebs – foi doada ao Museu da Santa Casa de Misericórdia em 2007. Essa foi a estratégia da família para atender ao visionário pedido do seu patriarca, José Henrique Lanat, de nunca deixar o carro sair de Salvador. Vale ressaltar que o exemplar, de nº 475, chegou em fevereiro de 1901, já com volante na direção.
Apesar do relativo atraso, a Bahia reage de forma inconteste e, em poucos anos, já se destaca no cenário nacional. Já sediou o Encontro Nordeste de Veículos Antigos em 2008 – evento que apresentou o Panhard como destaque, apesar da restrição contratual na doação ao Museu – e uma etapa do Campeonato Brasileiro de Regularidade para Veículos Históricos, da FBVA, em 2011.
Os reflexos são imediatos, pois cada conquista ou resgate serve de estímulo para outras tantas iniciativas. Inverteu-se o fluxo de apenas saída, com a vinda de inúmeros exemplares dos outros estados a até países.
Essa é a deixa para outro veículo curioso e marcante do acervo baiano: um Fusca 1949, fabricado na Alemanha e que chegou ao Brasil de forma misteriosa até para os controles da VW. Destinado ao mercado europeu, esse Fusca deve ter vindo como importação de usados, antes que as regras fossem enrijecidas. Observem que ele é anterior à implantação das montagens oficiais no país.
Esse curioso veículo tem, como de costume entre os antigos, uma história particularmente curiosa, que representa a persistência dos colecionadores locais: o motor original foi adquirido antes mesmo da carroceria. Resgatado em leilão do Mercado Livre, o engenho hibernou no galpão de Jorge Cirne, esperando um possível uso, até que o ex-proprietário resolveu leiloar também o restante do raro veículo. A empolgação do novo resgate foi imediatamente substituída pela decepção diante do estado da carroceria – infinitamente pior do que o aparentado nas fotos. O Fusca acabou coberto e esquecido por mais um tempo.
Mas o vírus da ferrugem é incurável: enquanto um excelente profissional aceitou o desafio de corrigir as deformações do teto e restaurar as muitas cicatrizes do tempo, o inquieto Jorginho iniciou a peregrinação por informações e peças, indo parar na matriz da VW. Os arquivos na Alemanha esclareceram o modelo, cor original – vinho – e acabamento interno. Muitas das peças originais também foram adquiridas durante a garimpagem.
O resto da epopéia já é conhecido: um belíssimo e raro exemplar, restaurado com todo o rigor e dedicação – conquistando Placa Preta – que abrilhanta uma fantástica coleção de VWs.
Mas o Volkswagen acabou por honrar o histórico de pioneirismo do Estado, ao conquistar o status de Fusca mais antigo do país, já que foi fabricado no mês de janeiro de 1949. Aliás, o mesmo ano do histórico desfile do Panhard nos 400 anos de Salvador. Será coincidência?
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*Apaixonado pelo segmento desde criança, começou a colecionar miniaturas aos 8 anos, dirigir aos 12 (em estradas de terra), garimpar “maxiaturas” aos 18, competir em rallyes aos 26 e escrever o blog www.pitstopbahia.blogspot.com aos 47. Mercadólogo por formação, gestor por profissão, fotógrafo por hobby e antigomobilista por paixão, aprecia também “carros atores” e perseguições cinematográficas. Fiel às suas conquistas, ainda possui o primeiro carro antigo: uma pick-up Chevrolet 1954 – Beiço Grosso – comprada em 1986. A mais recente aquisição é um Fusca 1972 laranja, apreciado pelos amigos, detestado pelas filha.
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