E o simplório paquímetro revoluciona a indústria
*Roberto Nasser
Ford teve a percepção da inviabilidade, e coragem de reunir opiniões, desenvolver e mudar o processo produtivo, adotando as tarefas específicas, sequenciadas, repetitivas. Era a linha de montagem. A partir do primeiro de dezembro de 1913, os ganhos eram sensíveis. Antes, no processo comum, mas agora visto como caótico, levava-se mais de 12 horas para montar o Modelo T. Com o novo sistema, cerca 2 horas e meia.
Foi uma revolução industrial, criou uma teoria administrava, o Fordismo. Mas não era o fim do processo. Logo entendeu a necessidade de padronizar não apenas as operações, mas também as peças, partes, enfim, os insumos para montar o veículo. Não cochilava sobre os louros das vitórias, e queria garantir a liderança frente às demais marcas concorrentes em tempo de produção, volume, redução de custos, crescimento de fabricação, vendas e lucros. Era, na nascente atividade, caminho coerente, na tecnologia então atualizada e disponível – especialmente a um mecânico talentoso, criativo, como era o engenheiro Ford. A denominação engenheiro advinha do fato de cuidar de um imponente engenho, o gerador de eletricidade, na companhia criada por seu empregador e amigo por toda a vida, o inventor da lâmpada elétrica Thomas Edison.
Sem formação acadêmica, sem frequentar tal meio, tanto por tal distância da sua realidade para os degraus superiores da tecnologia, e por fatores diversos, seus nascentes veículos apresentavam discrepâncias, sem rigor, e nem tudo era rigorosamente igual, fossem peças, sua junção em conjuntos, e o agrupamento em veículos.
Mercado
A ascensão de vendas, o ocupar espaço no mercado, o fazer veículos simples, operacionais e resistentes, ao contrário do caminho de época, quando o foco geral era inspirado nas carruagens e veículos de tração animal, distinguidos por tratamento luxuoso e preço elevado. As diferenças criaram críticas, e à época se diziam lançadas ao vento por Alexander Wilton, pequeno construtor de veículo caro e tecnicamente bem cuidado – mas anos antes perdedor de uma corrida para Ford. A vitória gerou interesses, investimentos, e permitiu o início da Ford como indústria. Contam os fatos, Ford e Winton alinharam suas novidadosas máquinas para disputa em Grosse Point, Detroit. Winton, engenheiro, fabricante de bicicletas e nascentes automóveis, ficou assustado com a precariedade do sistema de direção do carro de Ford, dando-lhe um de sua produção. E Ford veio a ganhar por conta de outra deficiência: seu carro não tinha freios – ao contrário do Winton.
Destaques dos classificados
Na essência as críticas atribuídas a Wilton miravam firme sobre o fator qualidade, reconhecido em seus veículos, construídos em contadas e cuidadas unidades, alegadamente prejudicada pelo maciço volume industrial dos Ford.
Henry Ford era rápido em decisões e soluções. Pouco tempo antes contratara alguns engenheiros e especialistas da Escandinávia, recomendados pela excelente vivência e formação técnica, os formuladores do sistema da linha de montagem. No grupo consultou o sueco Charles Sorensen, um destes engenheiros e seu braço para os assuntos de técnica.
Sorensen sugeriu começar pelo mais simples: aplicar equipamentos primários para verificação contínua de medidas das peças. E garantiu, isto tornaria os Ford mais acurados em construção relativamente aos Wilton e os carros de Henry Leland, engenheiro, empreendedor, e seus Cadillac – os primeiros estadunidenses a ter peças intercambiáveis.
Wilton e Leland eram reconhecidos em seu mercado como os construtores mais dedicados à exatidão e à qualidade em seus produtos.
O sueco listou as atividades de construção onde as medidas deviam ser verificadas, e sugeriu, no atacado das etapas industriais, sua aferição por JoBlocks. Era sistema criado por Carl Johansen, também sueco, inspetor de qualidade da fábrica estatal de rifles, baseado na junção de blocos metálicos com dimensões padrão. Cubos e barras de diversas medidas exatas, de modo que sua soma e montagem dessem medida padrão. Também, o uso de Caliper Rule – evolução do paquímetro de Vernier, criado quatro séculos antes -, uma régua e suas variáveis, com duas escalas sobrepostas.
Nônio, Vernier
A ferramenta de aferição não era tratada como paquímetro, de nosso conhecimento, mas Calibrador de Vernier, quando apresentado ao final do século XVI. Era trabalho de Pierre Vernier, engenheiro de origem francesa, mas criado e estudado na Espanha, baseado nos estudos do português Pedro Nunes. Este, judeu, cristão novo, considerado o maior matemático luso, não estava à procura de maneira para medir pequenos objetos. Ao contrário, no grande passo de desenvolvimento da navegação lusitana inventou série de aparelhos para de medição para uso marítimo. Um deles transferia as medidas tomadas pelo astrolábio, transpondo-as da aferição vertical para um plano horizontal, eliminando a deformação da medida na simples transferência de planos. Coisa complicada, raciocínio matemático, à base de uma teoria sobre triângulos. Porém competente, inovadora – embora tenha demorado a ser absorvida e ter aplicação em uso nas viagens marítimas. Vernier, criador e construtor de aparelhos para a agrimensura, deu função prática ao amplo trabalho e o simplificou com um aparelho baseado em duas escalas sobrepostas e graduadas à base de 1/20 de milímetro, ou seja, 0,05 mm. No memorial descritivo de sua invenção, foi digno e generoso, concedendo a origem ao estudo do Nônio.
Nome curioso, parece ligado à lógica cartesiana dos lusos. Verteu-se ao latim o sobrenome Nunes – deu em Nonius. Depois, em marcha à ré para o idioma português, transformou-se em Nônio…
Então,
Com os JoBlocks equipe de metrologia conferia moldes, matrizes, ferramentas. Na linha de produção os montadores, com Caliper Rule nas mãos, faziam processo idêntico com as peças construídas em casa, na grande operação verticalizada, onde a diferença máxima era o mínimo aferido pelo Calibrador/Paquímetro de Vernier. Na prática todos os envolvidos no processo produtivo tinham um Caliper Rule no bolso do macacão. Para a tecnologia de hoje tal medida é coisa grosseira.
A ordem de Ford, digamos o Cala Boca para o uso do equipamento em todas as peças e em todas as operações de montagem, não foi recebida exatamente com aplausos. Você se lembrará, naquela época as fábricas de automóveis produziam e agregavam quase todas as peças formadoras do veículo final. E a produtividade era buscada sem trégua, com objetivos diários. Incluir a operação de medir cada item envolvido era um atrapalho, um gasto de tempo a exigir esforços para superar as metas traçadas. Mas Ford mandava usar o Caliper Rule, simples e barato – como gostava e exigia -, mesmo sem projetar ter sido uma sub-revolução econômico industrial no processo, ao garantir apuro, pouco refugo e qualidade no produto.
Ford não era doutor, mas para bobo não servia. Assim, sub negócio do ganho de qualidade, associou-se à Johansen e, no pódio industrial como maior fabricante do mundo, dinamizou o uso das ferramentas de aferição por todas as atividades industriais dos EUA, gerando hábito industrial. Até os fabricantes de veículos concorrentes se tornaram clientes dos JoBlocks, dos paquímetros, micrômetros e ampla lista de ferramentas produzidas pela joint-venture especialista. Seu uso permeou para as indústrias menores, ferramentarias, torneiros, oficinas, mecânicos, ampliando a exatidão e a qualidade de produtos e serviços em todos os setores.
Assim,
Li esta história há algum tempo e, pela curiosidade, escrevi texto limitado pelo espaço na Coluna De Carro por Aí. Entretanto Allah, clemente e misericordioso, invisível defensor do Museu Nacional do Automóvel, ajudou-me a conseguir localizar, adquirir e importar um dos Caliper Rule, cópia dos originais produzidos por Ford e Johansen, para se transformar em peça de memorabilia no Museu.
É interessante. Quatro pequenas réguas de madeira, unidas por dobradiças em latão, permitindo dobrar-se em duas, com delicados pinos de encaixe neste material, para dar firmeza. Numa das partes, corte abriga a haste de uma peça em latão, assemelhada a grosso modo, a uma picareta com apenas uma ponta.
As pequenas réguas medem 3 “=7,51 cm; multiplicam-se por dois – 6”= 15,01 cm; e, abrindo-se em quatro partes atinge 12” = 30,04 cm. Dita picareta tem curso graduado de 3” = 7,51 cm. Fechada, implementada pela citada picareta e dobradiça central, vai a pouco menos de 8 cm de comprimento, 1 cm de espessura, 2,5 cm de altura. Aparentemente pensado para ser um equipamento para ter no bolso.
Simples, prático, bem bolado, apesar de tanta teoria, matemática e história em seu caminho.
ps. E o nome paquímetro? Expressão grega. Paqui, espessura. Metro, medida. A imprecisão de um paquímetro é aferida em medida própria: P=1-C/n, onde C é o comprimento do minio nônio, e n é o número de divisões do Nônio.
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*José Roberto Nasser é jornalista, advogado, fundador e ex-presidente da Federação Brasileira de Veículos Antigos e Curador do Museu Nacional do Automóvel — Brasília, DF
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