Alexander Gromow

“VOLKSTRAKTOR” o trator popular de Porsche

Sobre a foto de abertura acima: Imagem histórica que mostra Ferdinand Porsche mostrando para o Führer e seu staff uma miniatura conceitual do Volkstraktor Typ 110 que foi apresentado juntamente com alguns dos implementos previstos para ele. Esta miniatura finamente alojada em um estojo, foi um presente pelo aniversário de 50 anos de Aldolf Hitler. Esta foto lembra aquela da apresentação da miniatura do KdF-Wagen igualmente apresentada a Hitler por Porsche anos antes.
Ferdinand Porsche tinha o que se poderia chamar de um sentido técnico universal. Ele não se limitou a qualquer especialidade, mas tratou de todos os meios mecânicos de locomoção.

A história descreve o seu primeiro grande sucesso no ano de 1900. Naquela época, o carro elétrico do jovem construtor de apenas 25 anos da empresa Lohner de Viena foi uma sensação na Exposição Mundial de Paris. Não existe, desde então, um gênero de veículos no qual Porsche não tenha feito desenvolvimentos e nos quais ele não tenha alcançado sucesso.

O carro elétrico “Lohner Porsche” que foi exibido na Feira Mundial de Paris de 1900, hoje no Museu de Tecnologia de Viena, Áustria. Os motores ficavam nas “calotas” das rodas dianteiras (Foto: Site: Auto Concept Views)

De um lado estão os famosos carros de corrida: o Austro-Daimler, a Mercedes SSK, o carro com 16 cilindros Auto Union ou o lendário carro esporte Porsche. Por outro lado, existem muitos modelos populares, cuja coroação é certamente o Fusca.

Acima à esquerda: Austro-Daimler “Sascha” do Porsche Museum (Foto: Wikipedia). Acima à direita: Mercedes-Benz SSK, 1927 (Foto: Site Conceptcarz). À direita: Carro de corrida “Tipo C”, 1936, projetado por Porsche para a Auto-Union. Um bólido que descende do “Tropfenwagen” de corrida da Benz também projetado por Porsche quando trabalhou lá. Motor central V 16, superalimentado, de 520 hp a 5000 rpm e máxima de 340 km/h (Foto: AUDI)

Já em 1915, Ferdinand Porsche, acompanhado do seu fiel escudeiro Karl Rabe, trabalhou na Ausrto-Daimler em um Pflugtraktor — trator arado, desenvolvimento feito em paralelo com os Landwehr-Train — comboios rodoferroviários movidos a eletricidade gerada por um grupo gerador instalado no primeiro carro que alimentava os reboques com acionamento elétrico (veja minha matéria sobre este assunto). Já naquele tempo, com os estudos de um Pfugtraktor, Porsche se preocupava com a motorização da agricultura.

No populismo do Terceiro Reich, assim como o Volkswagen, que não deveria pertencer apenas aos ricos e privilegiados, também outros produtos deveriam ser acessíveis para todas as camadas da população. Estes produtos comunitários, propagados pelo Estado, recebiam o prefixo contemporâneo de Volks– (no sentido de “do povo”). Os exemplos mais conhecidos são o Volks-Empfänger — rádio receptor do povo, e o Volks-Wagen. que dispensa comentários.

Menos conhecidas foram a ideia do Volks-Fernseher — televisor do povo — e o fato de que, em Stuttgart-Zuffenhausen, sob a direção de Ferdinand Porsche, e ainda sem um contrato governamental, também estavam em desenvolvimento um conceito para um Volks-Traktor — trator do povo — e de um Volks-Pflug — arado do povo. Um projeto simples, robusto e confiável que, deveria substituir a então ainda largamente empregada tração animal na agricultura.

Volks Radio

No dia 15 de agosto de 1933, em Berlim, na IFA Internationale Funk Ausstellung — Exposição Internacional de Comunicação — foi apresentado o Volksradio, rádio do povo também chamado de Volksempfänger — receptor do povo — que levaria a voz do Führer para o lar de todos os alemães. A repetida referência ao povo, no prefixo VOLKS era a tônica do populismo do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o NSDAP, e lugar comum na sua propaganda.

Volksradio foi uma criação de Joseph Goebbels, responsável pelo Reichsministeriums für Volksaufklärung und Propaganda — Ministério para o Esclarecimento do Povo e Propaganda do III Reich.

Joseph Goebbels, primeiro da direita, inspecionando um Volksradio na IFA – Exposição Internacional de Comunicação – de 1933 em Berlim, acionando um de seus botões. NOTA DO AUTOR: observe que nas fotos de época feitas a mando do partido nazista sempre aparece alguém com uma faixa com a suástica virada para a câmera fotográfica (Foto: Bundesarchiv – Arquivo histórico da Alemanha)
No cartaz escrito em gótico lê-se: Ganz Deutschland hört den Führer mit dem Volksempfänger — Toda a Alemanha ouve o Führer com o Receptor do Povo

Este é o Volksradio modelo VE 301 – VE de Volks Empfänger (Receptor do povo) que custava 76.- Reichmarks. Este valor correspondia ao salário médio diário de um trabalhador da época:

Volks Fernseher

Einheits-Fernseh-Empfänger E1, referido na literatura contemporânea como receptor de televisão comunitário E1, foi apresentado em 1939. Para o público, este receptor de TV preto e branco, em analogia ao Volksradio, recebeu a denominação Volksfernseher, que quer dizer “Televisor do Povo”. Um avanço incrível para a época, lembrando que a TV chegou ao Brasil em 18 de setembro de 1950.

VOLKSTRAKTOR – O trator popular Porsche

Em 1937, Adolf Hitler deu a ordem para Porsche para desenvolver, agora em nome do governo, um trator popular. Com isto ele estava dando continuidade aos planos de apoiar a agricultura. Como estava previsto para o Volkswagen, o trator popular deveria ser barato e fácil de operar e, com isso, fomentar a “tratorização” dos agricultores alemães.

Hitler pretendia que o desenvolvimento Volksschlepper seguisse, em linhas gerais, o mesmo curso como foi com o Volkswagen. Ele tinha designado Robert Ley, o todo-poderoso chefe da DAF — Deutsche Arbeits Front, riquíssimo sindicato dos trabalhadores alemães no Terceiro Reich, para supervisionar e colocar o Volkswagen em produção e Ley o conseguiu “maravilhosamente”, conforme a opinião do Führer.

Aqui cabe um esclarecimento. A palavra Traktor — trator — um termo usado em vários idiomas, significa um veículo feito para puxar algo, tracionar implementos agrícolas, por exemplo. A palavra alemã para designar isto é Schleppen (puxar algo para algum lugar). Daí resulta que as palavras Traktor e Schlepper são sinônimos e costumam ser usadas nas descrições históricas.

Robert Ley foi então designado para fornecer um outro plano de fabricação, desta vez para o Schlepper de Hitler. Novamente Ley orquestrou um grandioso esquema de produção. A fábrica do Volksschlepper, a Volkstraktorenwerke — fábrica de tratores do povo — seria construída na cidade de Waldbröl (que era a sua cidade natal — ele puxou a brasa para o seu assado…) e a produção do trator foi inicialmente estabelecida em 100.000 unidades por ano, que rapidamente seria aumentada para 300.000.

O governo alemão aprovou o financiamento em 1938, e o projeto de arquitetura para a fábrica estava previsto para ficar pronto ao longo de 1940. Porém, Ferdinand Porsche e seu genro Anton Piëch conseguiram trabalhar no layout da fábrica junto com outros engenheiros somente em 1942. Muito provavelmente por causa das prioridades maiores das demandas de guerra. Com isto a construção ficou muito atrás do cronograma previsto e pouco foi realizado além da terraplanagem. Chegando a 1944, o trabalho na fábrica de Waldbröl chegou a um impasse, para nunca mais ser retomado.

Voltando ao projeto, uma inovação interessante em tratores projetados por Porsche remonta a antes de 1938, quando os engenheiros da Porsche foram alertados para o fato que “agricultores vão queimar a embreagem já que eles não eram pessoas com senso mecânico”. Esta declaração foi uma grande simplificação da situação real destes agricultores.

Em sua autobiografia, Ferry Porsche, aliás Ferdinand Anton Ernst Porsche, que trabalhou com seu pai no desenvolvimento do Volks-Traktor, esclareceu que o problema era mais uma questão da utilização prevista da máquina, ao invés de uma falta de habilidades do usuário. “Tivemos de considerar as muitas utilizações para as quais se destinava a máquina. Arar é feito em uma velocidade, gradar em outra, roçar em uma terceira e assim por diante. Não havia nenhuma vantagem em esgoelar o motor em trabalhos onde a baixa rotação era suficiente. Pode ser visto, a partir destes requisitos que, obviamente, um trator para agricultura tinha que ser versátil e flexível.”

Assim, os engenheiros da Porsche se empenharam para equacionar este assunto e introduziram um acoplamento fluidodinâmico (hidráulico) entre o volante e a embreagem monodisco a seco. Porsche solicitou à Voith para desenvolver este acoplador hidráulico com base no projeto que a Voith utilizava em aplicações marítimas. Este acoplador provou ser ao mesmo tempo simples e sem problemas. Esta tecnologia estava anos à frente dos demais projetos de tratores e continuou a ser uma grande vantagem técnico-operacional dos tratores Porsche fabricados depois da guerra.

A primeira versão do Volkstraktor, ainda em protótipo, o Tipo 110, tinha o condutor no centro, um chassi simples e um motor de 12 cv arrefecido a ar.

Foto do protótipo Tipo 110 com o condutor instalado à frente do motor

Logo depois surgiu a versão final do trator na vigência do Terceiro Reich, o Tipo 111 com um arado acoplado e previsão para vários outros implementos agrícolas. O banco do condutor passou para trás do motor. Um baú para transporte de carga foi adicionado ao projeto.

Nas duas versões as rodas de tração tinham sapatas de ferro que podiam ser rebatidas sobre os pneus, simulando a ação de uma corrente, para aumentar significativamente a tração no barro — obstáculo frequente na agricultura, projeto de Karl Rabe ainda nos tempos da Daimler — quando foram feitas as primeiras experiências com tratores. Rabe depois tornou-se o braço direito de Porsche e continuou a desenvolver o projeto do trator mesmo no tempo em que Porsche foi mantido prisioneiro pelos franceses logo depois do término da Segunda Guerra Mundial.

Na foto seguinte, Ferdinand Porsche, de chapéu, à direita do tanque de combustível, reporta a um grupo de civis e militares sobre o projeto do Volksschepper – desta feita com um baú de carga instalado na frente do trator. Mesmo não tendo o mesmo apelo que o projeto do Volkswagen, a industrialização do setor agropecuário alemão era igualmente uma prioridade do regime nacional-socialista. No entanto o projeto de tratores de Porsche seria completado somente depois da guerra.

Porsche “vendendo o seu peixe” para um grupo misto civil e militar, demonstrando as características do Tipo 111

Em 1944 a firma de Porsche foi transferido para Gmünd, na Áustria, em função do avanço da guerra, para só voltar a Stuttgart mais para o final de 1949. Os projetos de tratores, que foram sendo desenvolvidos “secretamente”, mesmo depois que o governo tinha desistido do Volkstraktor, foram evoluindo. Os aliados tinham decidido que somente empresas que já fabricavam tratores antes da guerra poderiam fabricá-los depois de 1945. Com isto a Porsche estava desqualificada para este produto, pois só tinha feito protótipos do Volkstraktor. Com isto a Porsche, através de uma licenciada desde 1949, a Allgaier Maschinenbau GmbH Friedrichshafen a.B., do sul da Alemanha, que já era fabricante de pequenos tratores, produziu centenas de milhares de tratores Porsche para uma Europa carente deste tipo de material.

Foto de um Allgeier tipo A111, 1953, produzido de acordo com projeto Porsche. Este modelo tinha o motor diesel arrefecido a ar e era equipado com o acoplamento fluidodinâmico

Estes tratores viraram objetos de coleção hoje em dia, se bem que não é raro ver um ou outro destes tratores trabalhando ainda nos dias de hoje. Esta história vai longe e a partir de 1956 a Porsche passou a produzir seus tratores com seu nome e o sucesso do produto continuou sendo muito grande.

Foto de um trator, já na época em que eram fabricados pela própria Porsche ostentando a sua característica cor vermelha; o motor era um Porsche Super 308, diesel, de 38 cv

Assim termina este relato da história dos tratores da Porsche, que começou em 1915 na Austro-Daimler com os primeiros estudos feitos por Porsche e Rabe. O projeto passou um bom tempo sendo desenvolvido internamente até que veio a efêmera tentativa do Terceiro Reich de lançar um Volkstraktor, num esquema gigantesco como o previsto para o Fusca, mas que foi abortado pelo início da guerra. Daí os estudos voltaram para o nível interno até o fim da Segunda Guerra Mundial, agora já sob o comando de Rabe, que tratava deste projeto com muito carinho e interesse. A produção começou a ser feita, sob licença, pela Allgaier em 1950, usando os históricos prédios onde outrora foram fabricados os imponentes Zepelins na cidade de Friedrichshafen.

Em 1956, a empresa Allgaier foi transformada na Porsche Diesel Motorenbau GmbH, que era uma empresa do Grupo Mannesmann. A produção continuou até 1963, quando a Porsche saiu do ramo de tratores, depois de constantes melhoramentos feitos no produto.

Coffee Train P312

Mas não se pode deixar de comentar o projeto especial feito por Rabe para o Brasil. Um projeto específico de tratores para trabalhar em cafezais, o Coffee Train P312 fabricado pela Allgaier-Porsche em 1954, daí a necessidade de uma carenagem, parecida com as para fins aerodinâmicos nos automóveis, mas que na verdade era para não danificar os pés de café e para proteger os condutores de serem atingidos pelos galhos. A largura do veículo também foi especificada pelo cliente para que os tratores pudessem circular entre os pés de café. No total foram produzidas 300 unidades iniciais de um projeto que seria gigantesco — inclusive com previsão de fabricação destes tratores no Brasil, mas que não vingou. Os motores eram a gasolina, a pedido do cliente que não queria fumaça de diesel para estragar o seu café, mas os motores 1800 de dois cilindros arrefecidos a ar não eram suficientemente potentes para esta aplicação. Deve ter sobrado uma dezena destes tratores. Portanto, acredita-se que problemas de comunicação levaram à inadequação destes tratores às necessidades das fazendas brasileiras e ao abandono da ideia.
A foto é de um exemplar que foi resgatado de uma fazenda brasileira no ano 2000 e meticulosamente restaurado por um colecionador inglês.

O Coffee Train P312 fabricado pelas Allgaier-Porsche que foi resgatado no Brasil por um colecionador inglês e cuidadosamente restaurado

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Alexander Gromow

Ex-Presidente do Fusca Clube do Brasil. Autor do livro EU AMO FUSCA e compilador do livro EU AMO FUSCA II. Autor de artigos sobre o assunto publicados em boletins de clubes e na imprensa nacional e internacional. Participou do lançamento do Dia Nacional do Fusca e apresentou o projeto que motivou a aprovação do Dia Municipal do Fusca em São Paulo. Lançou o Dia Mundial do Fusca em Bad Camberg, na Alemanha. Historiador amador reconhecido a nível mundial e ativista de movimentos que visam à preservação do Fusca e de carros antigos em geral. Participou de vários programas de TV e rádio sobre o assunto. É palestrante sobre o assunto VW com ênfase para os resfriados a ar. Foi eleito “Antigomobilista do Ano de 2012” no concurso realizado pelo VI ABC Old Cars.

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