Mosca Branca

Que pobreza! Os ultra populares da década de 1960

Dessa vez vamos falar não apenas de um, mas de quatro modelos que hoje são quase impossíveis de serem encontrados em estado original

A vida não estava fácil no Brasil naqueles anos 1960. A indústria automobilística brasileira sequer havia chegado à adolescência, muitos componentes eram importados e a produção ainda era baixa, fatores que acabavam encarecendo a produção. O salário da grande massa da população era minguado (sim, já havia uma enorme concentração de renda) e não sobrava muito para bens de consumo. Dá para concluir que comprar automóvel zero quilômetro era um luxo para poucos, bem poucos.

Comunicado oficial da antiga Caixa Econômica Federal de São Paulo convoca compradores em 1966

O Governo Militar teve então a ideia de criar uma linha de crédito via Caixa Econômica Federal e seus agentes, com juros subsidiados, que permitiria aos menos abastados a realização desse sonho com prestações a perder de vista. Caberia às montadoras que quisessem participar do programa o desenvolvimento de modelos populares, com valores que fossem bem mais baixos que os dos então em produção. Mas não havia tempo e muito menos dinheiro para novos projetos.  A solução encontrada foi desenvolver versões  ultra populares dos carros que já existiam.
Algo parecido com o que aconteceu no início dos anos 1990, quando o Governo lançou outro programa de incentivos para a indústria automobilística, desta vez para a venda de automóveis com potência máxima de mil cilindradas. Assim nasceram os improvisados VW Gol 1000, Fiat Uno Mille, Chevrolet Chevette Júnior e Ford Escort Hobby. Lembra?

Mas no caso dos anos 1960, ao invés de diminuírem a potência do motor, os fabricantes optaram pelas versões digamos “bem despojadas”. Para reduzir custos, tudo que era considerado ‘desnecessário’ foi eliminado, restando muito pouco além do mínimo. Cromados desapareceram, a qualidade dos materiais caiu ao extremo, tampas, forros, tapetes e até lanternas desapareceram.

E foi assim que Volkswagen, DKW-Vemag, Willys e Simca apresentaram seus modelos ‘pelados’. Veja só!

Fusca Pé-de-Boi — A Volkswagen conseguiu a façanha de criar uma versão ainda mais popular de um dos carros mais populares do planeta. O apelo publicitário era o de um veículo para uso no campo. Lançado em 1965, estava disponível somente nas cores cinza prata e azul pastel. Externamente não possuía um cromado ou friso sequer. Todos os detalhes de acabamento eram pintados de branco, como os aros dos faróis, as calotas e os parachoques de lâmina única. O escapamento tinha apenas uma saída (que economia!). Por dentro, forrações de porta feitas de Eucatex com maçanetas herdadas da Kombi, bancos finos e sem qualquer botão de regulagem, forração do teto apenas parcial. Nada de tampa no porta-luvas. Painel liso, sem aquela gradinha do auto-falante e sem lugar para um rádio. Não havia tapeçaria e nem mesmo marcador de gasolina! O nome Pé-de-Boi foi dado pela própria Volkswagen, conforme mostram as propagandas da época. Acreditamos ser essa a versão mais despojada do VW no Mundo inteiro em todos os tempos.

O Fusca Pé-de-Boi não foi um grande sucesso comercial e saiu de cena para o consumidor em geral em 1966. No entanto, foi fabricado especialmente para empresas frotistas até 1970. Um fato pouco conhecido até entre os “fusqueiros”.

DKWs Caiçara e Pracinha — Duas versões básicas da Vemaguet.  A Caiçara foi uma iniciativa da própria DKW-Vemag, lançada no final de 1962, antes mesmo do programa de incentivos do Governo. A exemplo do Fusca Pé-de-Boi, estava disponível apenas em duas cores: bege e azul ‘bebê’. A tampa traseira era aproveitada dos restos de estoque antigo, ainda com os ressaltos dos frisos, e abriam para o lado, ao invés de ser bi-partida como na Vemaguet. Cromados apenas nos aros dos faróis. Grade, parachoques e outros detalhes de acabamento externo eram da cor do carro. As calotas eram pretas. O interior era vermelho, com bancos lisos e de material de baixa qualidade. Forração (bem vagabunda!) apenas nas portas. Na parte de trás e porta-malas, tudo direto na lata. Quebra sol só do lado do motorista. No painel velocímetro/odômetro e marcador de combustível e temperatura. Mas suprimiram até aquele emblema 3=6 típico dos DKWs. A Caiçara foi produzida até o fim de 1964, quando deu lugar à Pracinha, que era igual à sua antecessora, exceto pelo sentido de abertura das portas e pelo desenho da tampa do porta-malas, já modernizado. Não tinha os sistemas Lubrimat nem de roda livre.

Foram fabricadas apenas 1.170 Caiçaras e 6.750 Pracinhas.

Simcas Alvorada e Profissional — A fabricante de origem francesa seguiu a mesma receita da DKW-Vemag, lançando duas versões de seu modelo ultra popular. O primeiro foi o Alvorada, que assim como o DKW Caiçara foi lançado antes mesmo do programa governamental: em 1963. Era uma versão simplificada da Chambord, mas não chegava a extremos quanto à falta de equipamentos. Era disponível em apenas duas cores, sem opção de pintura bicolor. Mantinha boa parte dos cromados, como nos parachoques. As calotas eram pequenas, cobrindo apenas o centro da roda, mas ainda assim cromadas. Forrações dos bancos e laterais tinham material inferior e de desenho liso. O painel também foi simplificado, com ausência de alguns botões, relógio elétrico, odômetro parcial e acendedor de cigarros. Foram vendidos menos de 400 Simca Alvorada.

Em 1965 uma nova tentativa, desta vez mais radical, dentro das normas do Governo. O mercado alvo era o de ‘carros de praça’. E foi batizado de acordo com essa proposta: Profissional. Esse sim, um legítimo pé-de-boi: parachoques de lâmina única pintados de cinza assim como a grade e as calotas. Nenhum cromado. Bancos de plástico e forrações laterais de Eucatex pintado. Painel ainda mais simples, porta-luvas sem tampa, porta-malas sem forrações. Ironicamente, o Simca Profissional era tão pelado, que o consumo e o desempenho melhoraram, graças a diferença de peso em relação à Chambord.


Obs: interessante notar que existiu também uma pick-up cabine dupla derivada da Chevrolet Brasil, chamada  Alvorada (foto). Hoje é outra ‘mosca branca’.


Willys Teimoso — Este primo paupérrimo do Gordini é de todos os já citados o mais radicalmente depenado. Acredite! Não sobraram nem mesmo as lanternas dianteiras e traseiras (iluminação, luz de freio e pisca-piscas), substituídas por uma lanterninha vermelha única, acima da placa de licença. Disponível em três cores — cinza, preto e marrom — o Teimoso foi lançado em 1964 e a lista de itens faltantes ou simplificados e bem grande: sem frisos, calotas ou cromados; interior sem nenhuma forração, inclusive no teto; bancos para lá de simples: armação de metal, com almofada inteiriça apenas na parte de cima, tipo ‘espreguiçadeira’; limpador de parabrisa único; nenhuma forração também no porta-malas; sem retrovisor externo. A revista 4 Rodas na época do lançamento fez até uma brincadeira, mostrando tudo o que faltava no Teimoso, como mostra a foto.

A tentativa do Governo de tonar o automóvel mais acessível à população fracassou e todos esses modelos populares venderam muito pouco. Como dizia o carnavalesco Joãozinho Trinta: “O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. Assim, quem porventura optava por comprar um desses carros pelados, tratava de equipa-lo imediatamente, o que podia ser providenciado até mesmo na própria concessionária.

Por isso, hoje em dia é quase impossível encontrar qualquer um deles em estado realmente original, sem nenhuma modificação ou acessório. Fato que os torna autênticas ‘moscas brancas’.


Texto e edição: Fernando Barenco
Fotos: Acervo Fiat

A seção “Mosca Branca” fala sobre automóveis nacionais  realmente raros. Quer fazer uma sugestão de modelo para as próximas edições? Então use o espaço de comentários ai em baixo!

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