Dessa vez vamos falar não apenas de um, mas de quatro modelos que hoje são quase impossíveis de serem encontrados em estado original
A vida não estava fácil no Brasil naqueles anos 1960. A indústria automobilística brasileira sequer havia chegado à adolescência, muitos componentes eram importados e a produção ainda era baixa, fatores que acabavam encarecendo a produção. O salário da grande massa da população era minguado (sim, já havia uma enorme concentração de renda) e não sobrava muito para bens de consumo. Dá para concluir que comprar automóvel zero quilômetro era um luxo para poucos, bem poucos.O Governo Militar teve então a ideia de criar uma linha de crédito via Caixa Econômica Federal e seus agentes, com juros subsidiados, que permitiria aos menos abastados a realização desse sonho com prestações a perder de vista. Caberia às montadoras que quisessem participar do programa o desenvolvimento de modelos populares, com valores que fossem bem mais baixos que os dos então em produção. Mas não havia tempo e muito menos dinheiro para novos projetos. A solução encontrada foi desenvolver versões ultra populares dos carros que já existiam.
Algo parecido com o que aconteceu no início dos anos 1990, quando o Governo lançou outro programa de incentivos para a indústria automobilística, desta vez para a venda de automóveis com potência máxima de mil cilindradas. Assim nasceram os improvisados VW Gol 1000, Fiat Uno Mille, Chevrolet Chevette Júnior e Ford Escort Hobby. Lembra?
Mas no caso dos anos 1960, ao invés de diminuírem a potência do motor, os fabricantes optaram pelas versões digamos “bem despojadas”. Para reduzir custos, tudo que era considerado ‘desnecessário’ foi eliminado, restando muito pouco além do mínimo. Cromados desapareceram, a qualidade dos materiais caiu ao extremo, tampas, forros, tapetes e até lanternas desapareceram.
E foi assim que Volkswagen, DKW-Vemag, Willys e Simca apresentaram seus modelos ‘pelados’. Veja só!
Fusca Pé-de-Boi — A Volkswagen conseguiu a façanha de criar uma versão ainda mais popular de um dos carros mais populares do planeta. O apelo publicitário era o de um veículo para uso no campo. Lançado em 1965, estava disponível somente nas cores cinza prata e azul pastel. Externamente não possuía um cromado ou friso sequer. Todos os detalhes de acabamento eram pintados de branco, como os aros dos faróis, as calotas e os parachoques de lâmina única. O escapamento tinha apenas uma saída (que economia!). Por dentro, forrações de porta feitas de Eucatex com maçanetas herdadas da Kombi, bancos finos e sem qualquer botão de regulagem, forração do teto apenas parcial. Nada de tampa no porta-luvas. Painel liso, sem aquela gradinha do auto-falante e sem lugar para um rádio. Não havia tapeçaria e nem mesmo marcador de gasolina! O nome Pé-de-Boi foi dado pela própria Volkswagen, conforme mostram as propagandas da época. Acreditamos ser essa a versão mais despojada do VW no Mundo inteiro em todos os tempos.
O Fusca Pé-de-Boi não foi um grande sucesso comercial e saiu de cena para o consumidor em geral em 1966. No entanto, foi fabricado especialmente para empresas frotistas até 1970. Um fato pouco conhecido até entre os “fusqueiros”.
DKWs Caiçara e Pracinha — Duas versões básicas da Vemaguet. A Caiçara foi uma iniciativa da própria DKW-Vemag, lançada no final de 1962, antes mesmo do programa de incentivos do Governo. A exemplo do Fusca Pé-de-Boi, estava disponível apenas em duas cores: bege e azul ‘bebê’. A tampa traseira era aproveitada dos restos de estoque antigo, ainda com os ressaltos dos frisos, e abriam para o lado, ao invés de ser bi-partida como na Vemaguet. Cromados apenas nos aros dos faróis. Grade, parachoques e outros detalhes de acabamento externo eram da cor do carro. As calotas eram pretas. O interior era vermelho, com bancos lisos e de material de baixa qualidade. Forração (bem vagabunda!) apenas nas portas. Na parte de trás e porta-malas, tudo direto na lata. Quebra sol só do lado do motorista. No painel velocímetro/odômetro e marcador de combustível e temperatura. Mas suprimiram até aquele emblema 3=6 típico dos DKWs. A Caiçara foi produzida até o fim de 1964, quando deu lugar à Pracinha, que era igual à sua antecessora, exceto pelo sentido de abertura das portas e pelo desenho da tampa do porta-malas, já modernizado. Não tinha os sistemas Lubrimat nem de roda livre.
Foram fabricadas apenas 1.170 Caiçaras e 6.750 Pracinhas.
Destaques dos classificados
Simcas Alvorada e Profissional — A fabricante de origem francesa seguiu a mesma receita da DKW-Vemag, lançando duas versões de seu modelo ultra popular. O primeiro foi o Alvorada, que assim como o DKW Caiçara foi lançado antes mesmo do programa governamental: em 1963. Era uma versão simplificada da Chambord, mas não chegava a extremos quanto à falta de equipamentos. Era disponível em apenas duas cores, sem opção de pintura bicolor. Mantinha boa parte dos cromados, como nos parachoques. As calotas eram pequenas, cobrindo apenas o centro da roda, mas ainda assim cromadas. Forrações dos bancos e laterais tinham material inferior e de desenho liso. O painel também foi simplificado, com ausência de alguns botões, relógio elétrico, odômetro parcial e acendedor de cigarros. Foram vendidos menos de 400 Simca Alvorada.
Em 1965 uma nova tentativa, desta vez mais radical, dentro das normas do Governo. O mercado alvo era o de ‘carros de praça’. E foi batizado de acordo com essa proposta: Profissional. Esse sim, um legítimo pé-de-boi: parachoques de lâmina única pintados de cinza assim como a grade e as calotas. Nenhum cromado. Bancos de plástico e forrações laterais de Eucatex pintado. Painel ainda mais simples, porta-luvas sem tampa, porta-malas sem forrações. Ironicamente, o Simca Profissional era tão pelado, que o consumo e o desempenho melhoraram, graças a diferença de peso em relação à Chambord.
Obs: interessante notar que existiu também uma pick-up cabine dupla derivada da Chevrolet Brasil, chamada Alvorada (foto). Hoje é outra ‘mosca branca’.
Willys Teimoso — Este primo paupérrimo do Gordini é de todos os já citados o mais radicalmente depenado. Acredite! Não sobraram nem mesmo as lanternas dianteiras e traseiras (iluminação, luz de freio e pisca-piscas), substituídas por uma lanterninha vermelha única, acima da placa de licença. Disponível em três cores — cinza, preto e marrom — o Teimoso foi lançado em 1964 e a lista de itens faltantes ou simplificados e bem grande: sem frisos, calotas ou cromados; interior sem nenhuma forração, inclusive no teto; bancos para lá de simples: armação de metal, com almofada inteiriça apenas na parte de cima, tipo ‘espreguiçadeira’; limpador de parabrisa único; nenhuma forração também no porta-malas; sem retrovisor externo. A revista 4 Rodas na época do lançamento fez até uma brincadeira, mostrando tudo o que faltava no Teimoso, como mostra a foto.
A tentativa do Governo de tonar o automóvel mais acessível à população fracassou e todos esses modelos populares venderam muito pouco. Como dizia o carnavalesco Joãozinho Trinta: “O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. Assim, quem porventura optava por comprar um desses carros pelados, tratava de equipa-lo imediatamente, o que podia ser providenciado até mesmo na própria concessionária.
Por isso, hoje em dia é quase impossível encontrar qualquer um deles em estado realmente original, sem nenhuma modificação ou acessório. Fato que os torna autênticas ‘moscas brancas’.
Texto e edição: Fernando Barenco
Fotos: Acervo Fiat
A seção “Mosca Branca” fala sobre automóveis nacionais realmente raros. Quer fazer uma sugestão de modelo para as próximas edições? Então use o espaço de comentários ai em baixo!
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