Pioneiro na restauração de automóveis antigos, o trabalho do mecânico americano Leonard Davis e sua oficina são apresentados neste artigo de 1959, publicado na revista Mecanica Popular em edição em espanhol
Na restauração de um carro antigo uma oportunidade de ouro. Foi assim, que Leonard Davis percebeu, em meados de 1950, o grande interesse despertado em Pontiac, Michigan, pelo trabalho feito por ele no seu Ford T 1911.
Este artigo foi publicado originalmente em espanhol, na revista Mecanica Popular, de fevereiro de 1959
A partir daí, teve a ideia de especializar sua oficina mecânica e transformá-la numa das primeiras oficinas de restauração automotiva do mundo. Uma luz no fim do túnel para dezenas de antigomobilistas da década de 1950, que queriam recuperar seus carros, mas não tinham condições de tocar sozinhos os difíceis projetos de restauração daquela época.
Nessa rara reportagem, publicada na edição de fevereiro de 1959 da versão espanhola “Mecanica Popular” da revista “Popular Machanics”, Leonard Davis conta sobre a criação de sua oficina, os históricos modelos restaurados e o desafiador cotidiano de uma equipe de artesãos que, peça por peça, traziam de volta à vida carros das décadas de 1910, 20 e 30, futura nata do antigomobilismo.
Já não se fabricam como antes
Por Paul R. Hayes
Esta clássica frase dos entusiastas dos carros antigos que dá título à matéria, animou Leonard Davis a estabelecer seu negócio. Começou recuperando seu próprio automóvel Ford T. Agora, possui uma oficina dedicada a restauração.
O que mais traz satisfação a Leonard Davis é aplicar sua habilidade de mecânico para conseguir o rejuvenescimento de relíquias históricas do automobilismo. Não é, pois, para se estranhar que a especialidade de sua oficina seja a restauração desses bizarros e arcaicos modelos, que começaram a percorrer os caminhos, faz meio século.
Destaques dos classificados
Outras oficinas geralmente realizam, de vez em quando, esse tipo de reparação e até há algumas que o fazem com certa frequência; porém como serviço adicional e de importância secundária. O estabelecimento de Davis, situado em Drayton Plains, próximo de Pontiac, Michigan, é um dos poucos negócios dedicados, principalmente, à reconstrução de carros antigos.
Leonard Davis no Ford modelo T 1911, cuja recuperação o conduziu ao negócio de restaurar autos antigos
“Tudo começou com um Ford Modelo T.” Observa Leonard Davis. Este automóvel foi o segundo de vinte carros antigos, que ele possuiu em diversas ocasiões.
Quando o conduziu para sua oficina de reparações, era um veículo desmantelado e sem para-lamas. Depois de um grande número de horas investidas, emergiu airoso e cintilante. Ostentava uma camada de pintura marrom, tapeçaria em couro vermelho com botões — tal como tinha ao sair de fábrica — e um jogo de para-lamas de chapa metálica, que Davis desenhou pacientemente, a golpes de martelo.
A fiel reprodução de cada um dos detalhes artesanais que caracterizava os automóveis Ford da etapa inicial e, sobretudo, dos mencionados para-lamas, despertaram o entusiasmo na cidade. Desde esse momento, começaram a visitar Davis, em busca de conselhos, um grande número de proprietários de autos antigos.
Leonard Davis
Davis é um homem de 39 anos, cujo ar tranquilo desaparece quando a conversa entra no terreno dos radiadores de latão e das lanternas de benzina. A fama de sua habilidade se estendeu de boca a boca, a tal ponto que as velhas relíquias do começo do século que lhe enviavam para reparar, impediam o trânsito das pessoas que iam ao seu estabelecimento comprar gasolina ou consertar seus automóveis.
“Havia chegado o momento em que tinha de decidir por um ou por outro”, declara ele. E assim foi, com efeito. Quatro anos depois, Davis se mudou para um novo edifício de concreto, situado entre sua casa e seu posto de gasolina e, junto com outro mecânico, começou a ganhar a vida mediante o exercício regular do que antes era apenas um hobby. Desde então, se somaram a eles mais dois entusiastas.
Roger Gallidan, um dos mecânicos de Davis, monta a buzina em um Ford modelo A de 1903
Todos eles são mecânicos de excepcional habilidade, já que podem tornear lanternas em latão, molduras para capotas, ou raios para rodas e produzir um painel metálico cheio de curvas elaboradas. Além disso, manejam com suma destreza a pistola de pintura, o pincel para fazer franjas delicadas, além da agulha de tapeçaria.
A princípio, os veículos que Davis restaurava vinham de vários lugares do estado de Michigan e, posteriormente, de Ohio. Hoje em dia, são enviados de pontos tão distantes como Long Island. Chegam no gancho de um caminhão-socorro ou então, em vagões de trem. Às vezes, são despachados em caixas e às vezes, vêm por seus próprios meios, barulhentos e trôpegos.
Muito trabalho e cinco automóveis por ano
São tantos os pedidos recebidos por Davis que o cliente que precisa reparar apenas um cubo de roda, fabricado há várias décadas, tem que esperar cinco ou seis meses até que ele tenha tempo suficiente para o trabalho.
A maioria dos carros que Davis recebe chega á oficina nas mesmas condições desse Buick modelo 10 E, de 1909
“Em média, o cliente recebe seu carro depois de 800 ou 1000 horas de trabalho”, explica Davis. Porém, essas horas de trabalho são o total acumulado durante cinco ou seis meses.
“A tarefa de procurar as peças exige muito tempo”, observa ele. “E, algumas vezes, é impossível encontrá-las, de forma que somos obrigados a fazê-las. Isso ocorre, sobretudo com partes como engrenagens, pistões e lanternas”.
A busca mal sucedida de peças, somada ao fato de haver na oficina outros trabalhos de caráter urgente, foram as causas pelas quais um Paige Daytona de corridas — excepcionalmente raro — permaneceu na oficina por mais de seis anos. Só então foi possível reparar os estragos causados por 140.000 quilômetros percorridos pelas estradas. Esse “Thundebird” de 1922 era um carro de cor amarelo canário, de dois assentos, com um sistema tipo gaveta, para um terceiro passageiro. Era movido por um motor Continental, cabeçote em L, de seis cilindros. Tal modelo foi feito em número limitado depois que um automóvel desses, fabricado em Detroit e sem carroceria, estabeleceu um recorde de velocidade na praia de Daytona, na Flórida.
Embora o tempo investido no Paige Daytona tenha sido uma exceção, Davis faz apenas umas cinco restaurações anuais. Isso poderia dar uma ideia equivocada sobre o volume do negócio, se não consideramos a relação com o intenso trabalho de reparação também de automóveis modernos. Essa parte das operações produz um terço das entradas e exige também um terço das horas de trabalho.
Clientela diversificada e marcas desconhecidas
A maioria dos autos que chegam à oficina são Fords da era inicial, incluindo um modelo F de 1905, que é um dos favoritos de Davis; mas aparecem também muitos Buick, Oldsmobile, Packard, Cadillac e de vez em quando, outros, de marcas menos conhecidas como American Scout, Jackson, Paterson e Sears.
Falta instalar uma roda neste Ford modelo F de 1905. Os raios são feitos por um marceneiro
Encontram-se na oficina, em várias fases de restauração, um Sears Motor Buggy, vendido por catálogo em 1908, um Paterson de 1908, um Oldsmobile “Curved Dash” de 1905, um Pope Toledo Tipo 12 de 1906; um Peerless de 1904 e um robusto Thomas Flyer, propriedade do próprio Davis, que é idêntico ao famoso ganhador da corrida “De Nova York a Paris”, fabricado em 1908.
O Flyer é o primeiro dos três “ases” que ele deseja ter em sua garagem. Os outros dois são um Pope Toledo e um Piece Arrow. O Pierce, afirma Davis com entusiasmo, “é o carro com a engenharia mais avançada já fabricado. Até as caixas do eixo traseiro são lavrados à máquina”.
Entre os carros que Davis já restaurou completamente, aparecem os seguintes: um dos dois únicos Olympian 1917-18 conhecidos, três carreteiras Ford Torpedo; um grande número de Fords T, R, S, e N; um par de Buicks 1910, um Vauxhall do ano de 1926; o Paige Daytona, um Cadillac 1903 e um Piece Arrow modelo 36 de 1910.
“Tenho que mencionar, com certeza, o Oldsmobile Limited de 1911, que trouxeram para reparar”, diz Davis. “Se tratava de um monstro. Os pneus tinham 1,12 metros de diâmetro, e media 2,74 m. de altura, com a capota levantada. Havia degraus para subir desde o estribo até o compartimento traseiro. O motor, que tinha seis cilindros do tamanho de baldes, media 1,53 metros de comprimento. Sem contar com a seção do motor, a carroceria media 3,66 metros de comprimento.”
O Oldsmobile Limited era também um dos autos mais caros que Davis já reparou. Nos anos de 1912 e 1913, era vendido por US$ 4500,00 dólares, ou mais.
Provavelmente, o veículo mais barato que já entrou na oficina é um Ford 1923 que poderia ser comprado por uns US$ 300,00 dólares.
A oficina
À esquerda, armário onde fica parte dos faróis de latão e diversos acessórios. Mais de cem, estão pendurados no teto. À direita, Davis costura uma tira da cortina traseira de um Pope Toledo
Quando existem mais de seis automóveis em reparação, a oficina onde se fazem esses milagres de rejuvenescimento se encontra totalmente saturada. Há um torno, uma furadeira e uma fresadora, ladeando uma bancada de trabalho que ocupa quase todo comprimento da parede. Pendurados no teto estão cerca de cem lanternas de latão, buzinas e outros acessórios os quais ainda não receberam o acabamento final. Já em um armário de vidro, que fica na parede oposta, se observam varias dúzias de objetos de latão polido, prontos para serem montados nos carros restaurados.
Uma seção em forma de L, contígua à oficina principal, é usado para a pintura com pulverizador. Além disso, foi edificada uma nova ala para receber a carpintaria.
No segundo andar, existem mais duas salas. Uma delas está ocupada por uma mesa para cortar, uma máquina de costura e todas as ferramentas necessárias para uma boa oficina de tapeçaria. Antes de Davis conseguir dominar a técnica de costurar, sua esposa Peg é quem vinha à oficina para confeccionar as capotas, algumas das quais são tão grandes quanto uma barraca de acampamento. Sua fabricação requer habilidade e precisão já que, ao se abrirem devem ficar bem esticadas. Aqui é onde se fazem, também, as tapeçarias de couro para os autos.
A segunda sala está cheia de chassis, arcos de capotas, assentos, rodas, motores e outras partes que pertencem a uma dúzia de automóveis os quais, depois de analisados, se constatou a falta de muitas peças, não sendo possível efetuar uma restauração imediata.
O processo de restauração
Os faróis, os para-lamas e os radiadores são as primeiras peças que sofrem os estragos do tempo; mas não é raro que toda carroceria ou o motor estejam danificados ou completamente inutilizados.
Cada automóvel que vai ser restaurado é submentido a um exame minucioso para tomar nota das peças que se encontram em mau estado e, sobretudo, as que faltam. Feito isto, se separa a carroceria dos chassis, para que o interior sirva de padrão ao fazer a nova tapeçaria.
As partes inutilizadas da armação de madeira são removidas e ela volta a ser montada, servindo de modelo para um marceneiro de Pontiac, o qual faz também os arcos das capotas, a estrutura dos assentos e os raios das rodas. Depois de montar a armação, se substituem os painéis metálicos deteriorados da carroceria por outros novos, de lâmina de aço ou de alumínio, feitos a mão.
Theodore Tedder, outro mecânico da oficina, trabalha no motor de um Ford S 1908 que tem ignição dupla, com duas velas por cilindro
O chassi é limpo com jato de areia e depois pintado novamente. O motor e os cubos de rodas são desmontados e examinados para ver se as peças estão gastas. Antes da montagem definitiva do motor, as rachaduras nos cilindros e das galerias de refrigeração são reparadas com solda de latão, as engrenagens quebradas são trocadas e algumas peças são fundidas em metal original.
Frequentemente, as rodas se encontram em tão mau estado que só o cubo e o aro são aproveitáveis. Portanto, se colocam raios novos e se pintam uma franja delicada que as convertem em obras de arte. Atualmente, os pneus não são mais problemas, pois a Firestone e a Gehering Tire Company, de Fort Wayne, os fornecem, com o desenho original, em quase todos os modelos antigos.
É preciso intuição mecânica
Embora a maioria dos autos antigos seja de projeto simples, a montagem exige mecânicos dotados de intuição já que, raramente, se conta com as especificações do fabricante. Foi uma exceção o caso de um Baby Fiat que chegou à oficina faz um ano. “Contávamos com um manual completo da fábrica e era, sem dúvida, de primeira classe.” relata Davis com um gesto festivo. “Infelizmente, não nos serviu de grande coisa, pois era impresso em italiano.”
À esquerda o trabalhoso desmonte do virabrequim de um Locomobile de 1906. À direita montando os para-lamas de alumínio
Na tarefa de montar essas relíquias de outrora, Davis e seus mecânicos se valem de fotos e da experiência adquirida, dos cuidadosos croquis e anotações que fazem ao desmontar cada veículo e, mais do que tudo, senso comum. Nos casos excepcionais em que tudo isso falha e se veem diante de um problema sem solução, enviam uma nota a um colaborador — qualquer um dos milhares de membros que pertencem ao “Clube dos Autos Veteranos”, ao “Automóveis Antigos” ou “Carruagens sem Cavalo”— e começam a receber toda sorte de informações, incluindo até mesmo a relação de modificações e reparos efetuados pelo último proprietário. Graças a essa fraternidade que existe entre todos os entusiastas dos autos antigos, é possível obter também as peças que necessitam.
Autos reconstruídos pela segunda vez
Como é de se supor, Davis também dá sua colaboração. No ano passado, respondendo ao apelo de um museu do Oeste, desmontou o motor de seu Rambler 1903 e despachou o cilindro para que utilizassem como molde para fundir um novo. Foi assim, que puderam terminar a restauração.
À esquerda, perfurando uma lâmina de alumínio, que será o para-lama traseiro de um Pope-Toledo de 1906. À direita, o trabalho de curvar a chapa, para dar o formato final
O modelo T 1911, que traçou novos rumos na vida de Davis, ostenta agora um novo jogo de para-lamas. Houve a necessidade de reconstruí-los pela segunda vez, depois de terem sido destruídos num passeio de automóveis antigos. Quando Davis tem que fazer novos para-lamas, corta as peças em lâmina metálica, faz as bordas e solda as tiras de reforço. Excluindo o tempo de pintura, se investem de 40 a 50 horas na fabricação de um jogo completo. Porém são horas bem investidas. O mesmíssimo Henry Ford seria capaz de garantir que as peças foram estampadas nas suas oficinas em Highland Park.
Exceto pela falta de pneus, esse Franklin 1905 conserva todas as peças originais
O visitante alheio a este mundo de relíquias históricas, e para quem todo auto velho é apenas sucata, se surpreende ao não ver peças enferrujadas, nem carrocerias desmanteladas, em nenhuma parte da oficina.
Os automóveis antigos, que se encontram a espera para serem examinados e passar para a oficina de restauração, são envoltos em lona impermeável, nos fundos do lugar. Até a casa, tipo rancho de Davis, situada do outro lado da pista de acesso, contém valioso material de propriedade de seus clientes ou dele mesmo.
Também existem mulheres entusiastas
Sua garagem está ocupada por um Austin 1930, um Roadster American-Batan 1939, um Paterson 1910 e um Franklin 1905 refrigerado a ar.
No corredor, ficam dois outros veículos antigos, entre os quais figuram um Brush. Além disso, em uma garagem instalada no porão se encontram os restos de um Rambler, algumas peças do Maxwell 1908 que sua esposa está restaurando — pois ela também deseja possuir um automóvel antigo — e debaixo de uma coberta protetora, o Ford marrom de Davis.
Ainda que o custo de reparação de um automóvel seja alto, pois é preciso considerar os materiais empregados, a mão de obra e as peças — que são repassadas pelo preço de custo — o luxo de possuir um carro antigo não é exclusivo dos endinheirados, como pode ser comprovado por uma moça de Pontiac.
Chega um Cadillac em peças soltas
Tal jovem estava obsecada para adquirir um Cadillac, porém, diferente das outras moças, o objeto dos seus sonhos era um modelo 1903, que enviou desmontado para Davis. O salário que recebia em uma fábrica de velas de ignição não era suficiente para pagar o custo de um reparo dessa natureza. Apesar disso, oito meses depois, ela deixava a oficina, dirigindo o Cadillac que se encontrava na mesma condição em que saiu da linha de produção, de Henry Leland.
Para reduzir os custos, ela mesma fez a maior parte do trabalho. Passou todos os sábados e domingos limpando as partes de madeira e até desmontou tudo que não era muito pesado. Além disso, viajou um total de 8.000 quilômetros para encontrar as peças que faltavam e ajudou nas operações de montagem. É muito possível que, no final, fosse a mulher que mais entendia de Cadillac, pelo menos de um Cadillac 1903.
Para Davis o mais valioso dessa história é o ingresso, no crescente grupo de entusiastas pelos automóveis arcaicos, de um novo membro que simboliza a concretização de seu sonho, à custa de esforço e perseverança.
Tradução: Geraldo Costa
Imagens atuais de alguns carros citados nesta matéria
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