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O preservador de Onças

O destino quis que dois dos 5 FNM Onça chegassem às mãos de Ricardo Oppi

História

O preservador de Onças

“São as forças do destino”, dirão os mais crédulos e espiritualistas. “Foi apenas mera coincidência”, pensarão os mais céticos. Não importa! O fato concreto é que a vida colocou no caminho de um restaurador de São Paulo, dois dos cinco exemplares conhecidos de um dos mais raros automóveis já fabricados no Brasil: o FNM Onça, cuja história do projeto contamos no box no final desta reportagem.

O branco, pertencente ao Museu do Automóvel de Brasilia. O primeiro carro a ser reencontrado

Até meados de 2009, o Brasil somente conhecia o paradeiro de um exemplar, branco, que hoje faz parte do acervo do Museu do Automóvel de Brasília, cujo curador é o jornalista e advogado José Roberto Nasser. Poucos sabiam da existência desses dois, alvos dessa reportagem. Por isso, somente para facilitar, vamos chama-los de Nº 2 — originalmente verde (embora estivesse pintado de vermelho quando foi descoberto) — e de Nº 3 — o vermelho, que “debutou” no XV Encontro Paulista de Autos Antigos de Águas de Lindóia-SP, em abril de 2010. Propositalmente, vamos revelar apenas o nome do protagonista dessa história, omitindo os demais. Afinal, mais importantes para a preservação da história da indústria automobilística nacional não são as pessoas envolvidas, mas sim os fatos. Então, vamos a eles!

Nº 2 – o enterrado

O Nº 2, quando foi encontrado

Profissional dos mais bem conceituados em seu ramo, Ricardo Oppi mantém em São Paulo há cerca de 20 anos a Oppi Old Cars, uma oficina de restauração. No início de 2004 estava ele em mais um dia de trabalho, quando dois garis da prefeitura, seus velhos conhecidos e responsáveis pela limpeza das ruas das imediações, chegaram anunciando: “Seu Ricardo, encontramos num terreno perto da favela do Buraco do Sapo, para os lados de Interlagos, um Alfa Romeo feito de fibra de vidro. O carro é de um alemão e está lá jogado, no tempo”.

A princípio Oppi não acreditou, afinal a montadora italiana nunca produziu nenhum automóvel com carroceria em fibra de vidro.
— Uma coisa que aprendi é averiguar tudo que me falam, por mais estranha que a informação possa a principio parecer — explica Oppi. — Então resolvi ir ver mesmo assim. Cheguei à casa do tal alemão, conversei, mas ele — uma pessoa muito fechada — não me deixou entrar para ver. Voltei uma, duas, três vezes. Na quarta vez, bati e disse que estava passando por acaso… Ele, sem paciência, me puxou pelo braço e falou: “Está bem! Entra. Vou te mostrar o carro para ver se você me deixa sossegado!”

Ao entrar no tal terreno, Ricardo se deparou com dezenas de carros de várias épocas espalhados pelo espaço: Fiat Fiorino, Passat, Lada… todos literalmente desmanchando! Olhando de longe, no meio do capim, Ricardo avistou a traseira do que seria o tal “Alfa Romeo de fibra”. A princípio veio a decepção: “Puxa, é um Mustang!”, pensou. Quando chegou perto e pôs a mão na carroceria, a surpresa: era mesmo um carro de fibra! Naquele momento, ele não conseguiu de imediato identificar o modelo, o que só aconteceu quando chegou à dianteira e se deparou com a grade cromada e seu “cuore” italiano no centro.
— Era um Onça! Naquele momento tive que me conter para não abraçar e beijar o Onça na frente daquele senhor alemão.

Ele também mostrou a Ricardo um outro carro de fibra de vidro, esse de mecânica DKW. Mas isso é assunto para uma próxima reportagem e não vamos estragar a surpresa!

Voltando ao Onça (que chamamos aqui de Nº 2), o carro estava até um pouco enterrado no chão. Havia sido pintado de vermelho — embora Oppi descobrisse depois que ele saiu de fábrica na cor verde. Encontrava-se em péssimo estado e bastante descaracterizado, já que estava sendo preparado sem nenhum critério alguns anos antes para ser usado em competições, pelo filho do proprietário. Mas este veio a falecer, fazendo com que o ancião, desiludido, abandonasse seus projetos automobilísticos. Como resultado, o grande terreno cheio de carros abandonados.

Oppi comprou o carro e de imediato o levou para sua oficina. O FNM 1967 permaneceu guardado durante 3 anos, já que o próximo passo seria encontrar um parceiro-investidor com o perfil exato para um projeto deste tipo.
— Não basta encontrar quem tenha condições financeiras para bancar um projeto de restauração. É preciso que o investidor compre a idéia. Que tenha “peito”. Que veja o que aparentemente é um monte de lixo e fale “Faça!”. — ensina Oppi.

O parceiro escolhido foi um colecionador do Sul do Brasil. Em São Paulo foi feita toda a parte estrutural do carro. Um velho FNM 2000 — o JK — serviu como doador do chassi (o Onça usava o mesmo chassi do JK, só que encurtado em 22 centímetros), e da mecânica, já que os originais estavam imprestáveis. Hoje, (abril de 2010) o carro encontra-se no Rio Grande Sul, prestes a entrar na fase de pintura, montagem e acabamento. Faltam vidros, parachoques e outros detalhes, que serão reproduzidos a partir do Onça Nº 3 de nossa saga, cuja história vamos contar a partir de agora.

Nº 3 – O de Águas de Lindóia

O Nº 3, antes da restauração

Meados de 2005. Cerca de um ano depois de ter localizado e comprado o Onça Nº 2 (quando ainda procurava o parceiro-investidor), Ricardo Oppi trabalhava na restauração de um Buick 1947. Foi então que o cliente proprietário do clássico americano lhe mandou um e-mail onde dizia: “Olhe o que eu encontrei rodando no bairro da Mooca!”. Anexo à mensagem, a foto de um Onça vermelho, na porta de uma oficina, onde havia ido trocar o escapamento.

Curioso, Oppi se dirigiu até a tal oficina, mas o carro já não estava lá. Descobriu que tinha saído da garagem somente para fazer reparos mais urgentes. Depois de muito investigar, Oppi localizou seu proprietário e ouviu dele uma história surpreendente. O Onça vermelho havia sido dado de presente por seu pai, quando ele entrou na universidade, em 1967. Foi muito pouco usado e em seguida guardado, permanecendo assim por todos esses anos. Embora fosse um carro para restauração, estava em ótimo estado geral e completamente original.

Apresentação do Onça Nº 3 em Águas de Lindoia

O restaurador ficou super feliz com a descoberta. Não porque tivesse a intenção de comprar mais esse Onça, mas sim porque o carro serviria de referência para a restauração do seu. Por isso, resolveu manter em segredo o “achado”, temendo que com a divulgação da notícia o Onça Nº 3 acabasse sendo vendido e ele acabasse o perdendo de vista.

Quatro anos se passaram desde então, mas Ricardo jamais perdeu o esportivo FNM totalmente de vista. No final de 2009, foi procurado por um amigo colecionador de esportivos nacionais, que queria ter em sua coleção um FNM Onça. Ele então voltou a fazer contato com aquele único proprietário de nosso Nº 3, para negociar a compra em nome de seu amigo. O valor oferecido foi bastante considerável, diga-se de passagem. Depois de pensar 5 segundos sobre a proposta, o dono entregou as chaves do Onça a Oppi e disse: “Vamos fazer diferente. Leva o carro. Vamos restaura-lo!”. Acabava de entrar na vida de Ricardo mais um Onça!

Outro fato incrível, é que o automóvel que hoje é de propriedade de Roberto Nasser, pertenceu ao primo do proprietário desse nosso Nº 3. Foi comprado na mesma época e na mesma concessionária. Porém, quando foi vendido, estava em condições de conservação bem piores e passou por completa restauração, antes de integrar o Museu do Automóvel de Brasília, onde encontra-se atualmente.

Voltando ao Nº 3, Oppi conta que o carro não deu muito trabalho.
— Ele precisava basicamente de nova pintura e cromados e de itens de acabamento. Estava funcionando normalmente, embora ainda haja vários itens de mecânica a serem corrigidos. O interior estava íntegro e em ótimas condições. Os bancos mantém ainda as forrações originais por baixo das atuais das capas. Vamos refaze-los. Todos os 5 pneus na medida de 15,5’ são de fábrica, apesar de estarem ressecados e sem condições de rodar. Faltam alguns detalhes, mas não houve tempo hábil de terminar para trazer a Águas de Lindóia. Tudo estará perfeito para o encontro de Araxá, em junho deste ano! — prevê Oppi.

Ricardo Oppi comemora principalmente o fato deste Onça ser de um único proprietário, já que este possui uma memória privilegiada, lembrando de todos os detalhes de quando o automóvel ainda era zero quilômetro.
— Em nome da preservação desse raríssimo nacional, é muito importante que esse dois Onças fiquem rigorosamente iguais quando estiverem prontos e para isso essa fonte de referência é fundamental.

[box type=”shadow” ]A breve história de um felino brasileiro

Apresentação do FNM Onça no Salão do Automóvel de 1966. No stand, uma onça empalhada. Mais ecologicamente incorreto, impossível hoje em dia. Mas normal naquela época.

 

No início dos anos 1960 a Fábrica Nacional de Motores, com sede no então distrito industrial de Xerém, em Duque de Caxias-RJ, tinha o sonho de criar um autêntico esportivo de alto desempenho para sua linha, usando o mesmo chassi e mecânica Alfa Romeo de seu automóvel de passeio, o FNM 2000, nascido JK e rebatizado após o Golpe Militar de 1964. A estatal estava de olho num mercado em ascensão, que já contava entre outros com o Simca Rallye (1964), o Interlagos da Willys (1962), o Karmann Ghia da Volkswagen (1962) e o GT Malzoni, de fabricação independente, que usava a mecânica DKW (embora esses três últimos não pudessem ser considerados sinônimos de alta performance). Seus dirigentes militares resolveram então procurar o próprio “pai” do GT Malzoni, Rino Malzoni, para que este desenvolvesse o coupê. Assim, depois de um primeiro protótipo de 1964 que não agradou, foi apresentado no Salão do Automóvel de 1966 a versão definitiva do FNM Onça. Era um carro com carroceria em fibra de vidro, e motor de 4 cilindros um pouco mais apimentado que o do seu irmão mais velho, graças à carburação dupla e maior taxa de compressão. O Câmbio era de 5 marchas no assoalho.

Depois de encarroçado e pintado, o Onça retornava à FNM, em Xerém-RJ

Seu desenho foi claramente “inspirado” no Ford Mustang, americano lançado em 1964 e verdadeira coqueluche naquele período. Todos queriam ter um! O trabalho de construção do carro era realizado na fazenda de seu criador, em Matão, interior de São Paulo. Depois de laminada a carroceria, uma plataforma de FNM 2000 era retirada da linha de montagem e enviada a Matão, para que fosse encurtada em 22 cm. e instalada a carroceria (esse é um dos fatos que hoje dificultam sua identificação e localização). O carro era então pintado e mandado de volta à sede da montadora, que se encarregava de terminar a montagem do Onça, incluindo parte elétrica, interior, emblemas e acabamentos. Na prática, os carros eram vendidos sob encomenda pela rede de concessionárias FNM, mas teoricamente o projeto Onça nunca passou da fase de protótipos, já que jamais recebeu a aprovação oficial da Alfa Romeo. E foi a própria Alfa Romeo que deu fim ao projeto Onça, quando adquiriu a Fabrica Nacional de Motores do Governo Brasileiro, no final de 1967. O próprio Ricardo Oppi é de opinião que o automóvel não estava realmente pronto para ser comercializado. — É um carro que anda muito! E não pára, já que os freios a tambor são insuficientes. Além disso, a carroceria tem um grave defeito de torção, fazendo até com as portas se abram sozinhas, dependendo da situação! – afirma. O número exato de carros produzidos é uma incógnita. Fala-se em 5 automóveis: o branco, apresentado no Salão do Automóvel de 1966; o outro branco que hoje pertence ao acervo do Museu do Automóvel de Brasília; o verde, Nº 2 de nossa reportagem; o vermelho, Nº 3 de nossa reportagem; e um azul, cujas fotos circulam pela internet, mas não se sabe seu paradeiro. O filho de Rino Malzoni, Kiko, possui uma carroceria completa, que nunca chegou a ser encarroçada. Mas já ouvimos falar em 6, 8 e até 10 Onças fabricados![/box]

Texto e fotos: Fernando Barenco

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