Repórter Maxicar

Os carros antigos… antigamente – Parte III

Corrida de Calhambeques

Vapor X gasolina, uma corrida de calhambeques por 1600 quilômetros

Qual motor é melhor, a gasolina ou a vapor? Essa pergunta, que hoje não faz sentido, foi recorrente nos primórdios do automóvel, quando marcas especializadas em autos a vapor disputavam, em boas condições, o mercado com os fabricantes de carros a gasolina.

Somente na década de 20 é que os carros a gasolina tomaram a dianteira e os movidos a vapor foram para o museu. Porém, a discussão sobre qual dos dois seria mais eficiente, persistiu por décadas, dividindo os antigomobilistas do passado.

Até que, em 1951, a revista Mecânica Popular promoveu uma corrida de 1600 km, de Chicago a Nova Iorque, entre um Stoddard Dayton 1911, a gasolina e um Stanley Steamer 1913, a vapor, dirigidos por dois experientes antigomobilistas americanos. Durante sete dias ambos disputaram a vitória, quilômetro por quilômetro, medindo na prática os prós e contras de cada sistema. 

Veja no relato da época, a história do evento, divertido e imprevisível, que tentou encerrar a discussão, na contramão da história.

A matéria a seguir foi publicada originalmente na revista Mecânica Popular – Janeiro de 1952, edição espanhola – e traduzida por Geraldo Costa


Corrida de Antiguidades: enfim a lebre venceu a tartaruga

Por Roderick M. Grant

A Corrida de Antiguidades terminou. A velha rivalidade entre os antepassados dos aerodinâmicos automóveis de hoje e a eterna discussão a respeito da supremacia do carro a vapor sobre o carro a gasolina, chegou ao fim.

Deixando atrás de si um rastro de vapor branco e fazendo soar o velho apito triunfal, o Stanley Steamer, de 39 anos de idade, cruzou a linha de chegada e parou às portas de Nova York, diante de uma multidão de jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas.

    “Atrás de mim vem um pobre coitado que me seguiu desde Chicago, num calhambeque ridículo.” disse rindo Jack Brause, que tem o dobro da idade de seu automóvel, mas não parece – “deve estar chegando.”

    A bandeira quadriculada baixou para declarar Jack Brause o ganhador da Corrida de Antiguidades de Chicago a Nova York, patrocinada pela revista Mecânica Popular, iniciando as celebrações de seu quinquagésimo aniversário e culminando, esse mês, com a publicação da edição extraordinária.

    Algum minutos depois, o Stoddart Dayton, a gasolina, modelo 1911, chegou pela autopista de Saw Mill River, a toda velocidade que permitiam seus quatro cilindros, de 41 anos de idade.

    Ao volante, se encontrava Rube Delauty, que trabalhava com Jack Brause no Departamento de Automóveis Antigos, do Museu de Ciência e Indústria de Chicago. Esse estacionou seu calhambeque junto ao rival vencedor e soou sua buzina de borracha com furiosos roncos.

    “Não entendo como conseguiu chegar, nessa cafeteira horrível”– reclamou Rube, o mais jovem dos dois, com a idade de 70 anos, que pode domar o automóvel mais recalcitrante. Demonstrou isso, quando o Soddard Dayton, após percorrer os 1600 quilômetros da competição, se recusou a funcionar para terminar o desfile até a Praça Rockefeller, no centro de Nova York. Depois de tirar fotos e conceder entrevistas, Rube deu a volta na manivela para arrancar novamente, porém não aconteceu nada.

    Problemas antigos

    A multidão empurrou o antigo automóvel, mas o motor continuou recalcitrante. Rube Delauty desceu do assento e tentou mais uma vez com a velha manivela de bronze. O motor começou a rodar, produzindo os ruídos mais estranhos. Então ele fez ajustes, disse alguns impropérios, que fariam juz a um tropeiro de mulas, e, finalmente, os quatro cilindros começaram a funcionar no mesmo ritmo que tiveram há 41 anos.

    O desfile da vitória

    A procissão pôde então se dirigir para o centro da cidade, entre aplausos e o regozijo dos nova-iorquinos, que tomando a coisa pelo engraçado, gritavam para os velhos motoristas, frases de época, como “procura-se um cavalo” ou se espantavam com as duas garotas, vestidas na última moda de 1913, usando enormes chapéus emplumados e que tiveram a ousadia de acompanhar os septuagenários, durante o percurso de quase 1.713 km.

    A acompanhante de Jack Brause foi Margaret Harris, secretária do autor. Sua principal missão era lembra-lo de parar e encher o tanque de água a cada 50 quilômetros de percurso.

    No Soddard Dayton, para consolar Rube Delaunty nas horas negras dos pneus murchos ou dos magnetos molhados, viajou Eleanore Hall, secretária de Norbert Hildebrand, do Museu de Chicago e quem teve a ideia de fazer a corrida, como solução para as frequentes discussões entre Jack e Rube, sobre as vantagens do vapor ou da gasolina.

    Os dois veículos são propriedades do prefeito de Chicago, Lenox R. Lohr, presidente do dito museu.

    Velocidade média: 32 km/h

    Durante os sete dias da corrida, que terminou com a chegada do Stanley, 37 minutos antes do Stoddard, houve um total de 53 horas e 4 minutos de estrada, uma velocidade média de 32,9 km/h e aconteceram inúmeros problemas, ainda que não fossem tantos, como nos tempos das estradas antigas, de terra.

    Os pneus eram a maior dor de cabeça para o motorista do Stoddard Dayton, apesar dos modelos antiderrapantes, especiais, que a companhia Firestone fabricou, quatro dias antes da corrida. Os aros antigos, rodas e cintas que eram usados naquela época, foram a causa de muitos percalços e furos. Levou uma noite inteira na fábrica Firestone, de Cleveland, para descobrir como eliminar esse problema.

    O auto de Jack Brause percorreu um total aproximado de 420 metros por litro de água, em média.

    A aventura

    A água era uma preocupação constante para o Stanley Steamer

    Quando Jack Breuse chegou à parte sul de Chicago, teve que colocar uma magueira na lagoa do parque para encher o tanque de água, com 151 litros de capacidade.

    Rube Delaunty, no carro a gasolina, zombou dele e seguiu o caminho. Em Michigan City, Indiana, os queimadores do Stanley se apagaram. Rube, claro, prosseguiu a corrida para ganhar vantagem sobre o rival. Porém, nessa mesma noite, em Jackson, Michigan, foi sua vez: um aro soltou da roda e sumiu na escuridão da noite. Até agora, ainda não foi encontrado.

    Parecia que a demora seria grande, até que, por sorte, encontraram um agente de Stundbakers, em Jackson, que tinha uma coleção de seis carruagens sem cavalo e concordou em emprestar para Rube Delaunty, um aro que servisse no Stoddard. O primeiro lugar onde pernoitaram, foi Jackson. Na manhã seguinte, a mais de um quilômetro e meio da cidade, um pneu murchou, furado pela famosa cinta.

    A Firestone forneceu os pneus e parte do apoio

    Passaram a segunda noite em Detroit e na manhã seguinte, Rube Delaunty teve que tirar sua bomba de ar novamente e encher outro pneu furado. Em Cleveland, aonde chegaram na terceira noite, as cintas e os aros defeituosos foram reparados numa revenda Firestone. Mas, antes de chegar nesta última cidade, Rube teve outros contratempos que o atrasaram.  Um policial de trânsito em Sandusk, Ohio, fez com que ele parasse, para examinar os faróis de acetileno do Stoddart e precisou aplicar uma multa de três dólares por estarem defeituosos. Em Lorain, o Stanley de Jack Brause teve seu encontro com a lei e foi multado em sete dólares, por estar andando a excessiva velocidade de 101 km/h.

    Esses benditos policiais” — resmungou Jack Breuse — “me fazem ir tão devagar que minhas luzes traseiras se apagam.

    Grandes multidões se reuniram para passagem dos calhambeques. Em Conneaut, Ohio, foi feriado para os estudantes, que se alinharam no caminho dos veículos, apesar da chuva que caía, para dar boas vindas a Rube e Jack.

    Água no magneto

    A chuva foi o fator decisivo na corrida. Até então, o auto a gasolina, avançando continuamente, estava na dianteira. Equanto o vapor tinha que se deter a cada meia hora, para reabastecer de água. Porém o aguaceiro que caiu no trajeto de Ashtabula, Ohio, até Erie, Pensilvânia, foi a causa da derrota de Rube. Nem tanto a chuva, mas, sim, a água salpicada pelos outros autos e caminhões contra o fundo desprotegido do Stoddart.

    Os magnetos molhados não funcionavam no Stoddart Dayton

    O magneto estava encharcado. O velho auto a gasolina apagou, depois de duas ou três explosões. Rube Delaunty secou o magneto o melhor que pôde e, felizmente, o auto arrancou de novo; porém nem havia percorrido 21 km, depois de Erie, quando o magneto voltou a encher de água.

    Aubrey O. Cookman Jr. redator associado da Mecânica Popular e acompanhante oficial dos autos, ia numa caminhonete moderna e rebocou o calhambeque, com cordas, até que o motor voltou a arrancar. Todavia, o magneto ainda não estava completamente seco e o Stoddart teve que ser rebocado de novo, depois de parar um momento perto de Búfalo. Jack Brause já estava na cidade, esperando por eles, com o Stanley.

    Até que enfim, Rube se encontra com a água até o pescoço” disse, rindo do rival.

    Passava da meia noite quando Rube e Eleanor, sua acompanhante, chegaram a Búfalo. Na manhã seguinte, depois de um café oferecido pelo prefeito Joseph Marnk, recomeçou a corrida.

    Auxílio do alto

    Helicóptero abastece com água o Stanley

    Um helicóptero Bell, com uma carga de água veio para ajudar o Stanley Steamer e encheu o tanque deste com uma mangueira, enquanto o carro se movia pela estrada. A água e a gasolina eram um problema diário. O Stanley usava gasolina branca (benzina), que nem sempre podia ser encontrada. Alguns postos de gasolina, sequer conseguiam fornecer os 151 litros de água para seu tanque. Numa ocasião, o reservatório secou completamente e o auto percorreu 8 km, com a pressão que ainda restava na caldeira, até chegar num riacho.

    Rube Delaunty, que usava gasolina comum no Stoddart e precisava de pequena quantidade de água para o radiador, não tinha problema nenhum.

    Percorreram um total de apenas 96 km, durante o quinto dia de corrida, até a povoação de Avon, Nova York. Porém no dia seguinte, andaram 338 km até Amsterdã, com apenas uma interrupção, causada por um pneu furado num prego.


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    Reação animal

    O que mais marcou os motoristas dos carros e os acompanhantes, durante essa parte da estranha expedição, foram os animais que encontraram. Os cães pareciam ter a habilidade de reconhecer uma autêntica antiguidade, afirma Cookman. Não prestavam a menor atenção na caminhonete, mas se alvoroçaram com o espetáculo dos calhambeques, correndo atrás deles e enchendo o ar de furiosos latidos.

    Em certa parte do vale de Morrawk, uma vaca estava pastando tranquilamente em um cercado, quando apareceram os carros na estrada. A vaca ergueu os grandes olhos do chão e se lançou numa desenfreada corrida ao longo da cerca, mugindo.

    Em Geneva, os carros foram escoltados através da cidade por William Teague, outro colecionador de antiguidades, em seu carro Regal Underslung 1908.

    Vista do trajeto geral, aproximado, percorrido pelos dois competidores (Google Maps)

    O sexto dia do trajeto, que foi traçado pela Associação Automobilística Norte Americana, compreendia a distância entre Amsterdam e Poughkeepsie. Uma bomba do corpo de bombeiros de Hicksville teve que ser despachada para Red Hook, a fim de encher o tanque de água do Stanley, em movimento.

    Reta final

    Dois caminhões de televisão seguiram os autos competidores desde Poughkeepsie até a linha de chegada, na cidade de Nova Iorque.  Durante a última fase da corrida, por pouco Jack Brause não se converteu em perdedor. O Stoddart Dayton subiu e desceu as colinas do rio Hudson sem dificuldade; porém o Stanley a vapor teve que fazer esforço nas subidas. Em algumas das ladeiras mais inclinadas sua pressão de vapor, que normalmente era de 500 libras, baixou para apenas 40. Porém, um pouco antes do final da competição, tomou de novo brios na planície e fez subir sua média para 89 km/h.

    Algumas colinas a mais entre aqui e Chicago e eu te passaria o fumo.” declarou Rube de Launty. “Bah, era gasolina suja, que causou tudo“, replicou Jack, “não queimava direito”.

    A imprensa e a multidão prestigiam os participantes

    Os queimadores do carro a vapor não conseguiam ficar acesos quando ele se movia lentamente e se apagaram completamente no momento em que os veículos recomeçaram o trajeto no emaranhado tráfico de Manhattan, para chegar até a 5º Avenida. Durante os últimos 800 metros Jack Breuse teve que usar a pressão restante na caldeira para manter o carro em movimento. Porém, finalmente fez sua entrada triunfal na Praça Rockefeller, onde uma multidão aguardava ansiosamente.

    Ali, enquanto as câmeras cinematográficas dos jornais registravam o feliz acontecimento, Jack Breuse desceu de seu calhambeque e tornou a acender os queimadores.  O Stanley respondeu com uma violenta explosão, para delícia dos curiosos.

    Premiação e veredito

    Durante o almoço, que ocorreu no dia seguinte, para celebrar o fim da corrida, H.H. Windsor, neto de um dos vice-presidentes da Mecânica Popular e filho do editor presidente, apresentou o prêmio de US$ 500,00 dólares a Jack Brause, do Stanley Steamer, e em seguida para Rube De Launty, do Stoddart Dayton, entregou o segundo prêmio, que não estava anunciado antes: um cheque de US$ 499,00 dólares.

    Caramba, o combinado era que dividíssemos o prêmio entre os dois“, disse Jack Brause, entregando a Rube 50 centavos, para compensar a diferença.

    Você faria a mesma viagem outra vez?” Perguntou alguém. “De jeito nenhum!” disse Rube De Launt. “Preferiria mil vezes viajar de avião. Com esses novos autos a gasolina usados hoje, ninguém liga se o vencedor foi o velho Jack. Nem sequer sabem dirigir um (carro a vapor).

    Quanto a Jack Breuse, o ganhador, disse:

    Quando alguém trabalha com carros por 50 anos, acaba se cansando, prefiro andar de bonde. Como gosto deste Stanley… todavia, reconheço que o carro a vapor não tem futuro, a não ser que se produza um movido por energia atômica, com propulsão a vapor.

    Entre todos os comentários que ouvimos daqueles que haviam acompanhado pela imprensa, o desenrolar da competição, um deles nos causou particular satisfação: “que alívio ler algo que não tenha a ver com os problemas do mundo!”.

    Tal como disse certo comentarista, esses dois veteranos resolveram definitivamente um problema que não interessava a ninguém. Porém a satisfação dessa façanha foi compartilhada por um grande número de curiosos e aficionados por relíquias do mundo automobilístico, em todo país.


    Acima, um Stoddard  Dayton 1911 (foto: classicdriver.com). Abaixo, um Stanley Steamer, em video da CNN International

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    Geraldo Costa

    Graduado em Letras Literatura, fã dos automóveis antigos em geral e dos “novos antigos”, carros até 1990, dos quais gosta de pesquisar histórias e detalhes. Entusiasta do Fiat Uno, também atua como moderador no fórum online do “Clube do Uno Brasil.”

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