PERFIL
Nelson Cintra:
de piloto a restaurador
[dropcap]O[/dropcap] garoto de dez anos morava no bairro de Santa Teresa e era filho de um músico erudito que se aventurara também no ramo da construção. Não era ligado em automóveis. Já seu rico padrinho Djalma, um paulista casado, mas sem filhos, era um “bon vivant” e apaixonado por carros esporte europeus, possuindo ao longo da vida modelos como Porsche 356 e Jaguar XK 120. O ano era 1952 e numa de suas visitas ao Rio levou o afilhado para assistir pela primeira vez uma corrida de automóveis. A prova aconteceria no Circuito da Gávea, o famoso “Trampolim do Diabo”. Bem relacionado, Djalma foi com o menino visitar os boxes antes da prova.
— Aquela confusão, eu maravilhado e meu padrinho me puxando pela mão. Em um dos boxes surgiu um camarada magro, alto, de macacão branco, capacetezinho de couro, encostado num carro vermelho. Contente pela visita, ele agarrou o meu padrinho e depois os dois ficaram ali conversando. De repente, fui surpreendido sendo colocado dentro do cockpit.
O piloto era Henrique Cassini — ganhador da prova naquele ano. O garoto, Nelson Cintra. Nascia naquele momento sua paixão por automóveis, que ao longo dos anos foi se condensando nos modelos europeus, sobretudo os Renault. Não por acaso ele tornou-se piloto de Gordini na década de 1960.
Conversamos com Cintra em sua oficina no final de agosto de 2013. Foi um longo papo. Hoje com 72 anos, ele nos fez um resumo de sua vida, cujas histórias são sempre permeadas por automóveis.
Nelson ganhou seu primeiro carro aos 21 anos. Foi dado de presente pelo pai — muito a contra-gosto por sinal — quando ele entrou para a faculdade de direito. Seus sonhos de consumo eram o Interlagos e o Renault 1093, mas teve que se contentar com um Gordini comprado zero km. Na época Nelson já era amigo de Luiz Carlos Mendonça — que depois também se tornou piloto — e que sempre lhe “dava poeira” com seu 1093, nas madrugadas, pelas ruas do Rio.
— Quando meu Gordini estava com uns quatro mil quilômetros rodados, eu soube que havia um camarada vendendo um 1093. O carro dele já era “sambado”, mas mesmo assim propus trocar um pelo outro. O negócio não pôde ser feito porque o meu carro estava alienado e meu pai não autorizou a troca. Troquei então só o motor e ainda devolvi uma grana. Fui na concessionária, comprei um contagiros e passei a ter um “1093” branco.
Num belo dia de 1966 a novidade: Luiz Carlos havia sido convidado para correr as 24 horas de Interlagos, em São Paulo, com seu próprio carro, ao lado de Mauricio Chulam, na equipe do famoso preparador Luigi Ciai.
— Procurei o Ciai para que ele fizesse o mesmo comigo. Argumentei que meu Gordini tinha motor de 1093, mas ele não topou. Disse que a equipe já estava completa, mas pediu que eu levasse meu carro para o autódromo. Mal sabia eu que a intenção era tirar peças no caso de defeito do carro que corria.
Destaques dos classificados
Mendonça nega até hoje, mas Cintra conta que a certa altura da madrugada teve que substituir Mendonça na pista já que ele estava muito cansado e Chulam dormia depois de beber umas e outras. Trocaram de roupa e Nelson não foi reconhecido por causa do capacete. Correu durante meia hora. Quando Ciai descobriu foi bronca para todo lado!
Um problema mecânico causado pelo excesso de giro acabou com a brincadeira. Mas aquela experiência foi suficiente para que Nelson se tornasse piloto. Um dia leu no jornal a notícia que seria inaugurado o Autódromo de Jacarepaguá, no Rio. Participou de sua primeira corrida naquele mesmo ano, com seu Gordini/1093, que continuava a ser seu carro de uso normal. Era o campeonato estadual e o preparador continuava sendo o amigo Luigi Ciai. Com o passar do tempo, o Gordini branco Nº 51 foi transformado na carreteira azul marinho Nº 92. Quando Cintra abandonou as pistas, o carro foi vendido e dela nunca mais teve notícias. A história de seu resgate, anos depois, você lê no box abaixo.
Paralelo à carreira de piloto, Cintra trabalhava em um grande empreendimento imobiliário de seu pai, no Jardim Primavera — Baixada Fluminense. No início da década de 1970, sua experiência no ramo da construção civil o fez montar uma empresa que prestava serviços para a indústria petrolífera. Uma dessas concorrências para a Petrobrás o faliu por causa da crise do aço, que fez o preço do produto disparar no mercado internacional. Na época, o presidente da estatal era o general Ernesto Geisel, depois nomeado Presidente da República. Nelson foi então trabalhar no ramo do transporte de cargas, prestando serviços para a Cervejaria Antarctica. Começou com apenas um caminhão, chegando a três nos anos 1980.
[box type=”shadow” align=”alignleft” width=”350″ ]A heroína
Em 2001 Cintra foi convidado a participar do Inca Trail, um grande rallye de regularidade para clássicos e 4X4 pela América do Sul. A largada aconteceu no dia 6 de outubro, no Forte de Copacabana, no Rio. Foram 25 mil quilômetros rodados em 55 dias. Passou por Brasil, Argentina, Bolívia, Peru, Chile e Uruguai. Grande parte do percurso em estradas de terra. O evento foi organizado por uma empresa da Inglaterra e a maioria dos participantes veio da Europa. O valor da inscrição era de US$ 42 mil! Cintra foi o único Brasileiro a participar. Foi contratado por uma emissora de TV portuguesa para transportar a equipe de reportagem e seus equipamentos.
Ele participou com sua Chevrolet C10 de cabine dupla, fabricada em 1974. A pick-up tem algumas modificações em relação à original: motor de 6cc 4.100 e câmbio de 4 marchas no assoalho, ambos do Opala, freios a disco e ar condicionado. A grade é do modelo fabricado nos anos 1980. O veículo é mantido guardado com orgulho e é chamada carinhosamente de “Heroína”. Mantém ainda todos os adesivos referentes à grande aventura.[/box]
Durante todo esse período, apesar das atribulações, Cintra jamais perdeu de vista a sua paixão pelos automóveis. Por um longo tempo manteve na medida do possível uma coleção. Visitava constantemente os ferros velhos em busca de peças para os Renauts nacionais — Gordinis e Interlagos — que na época eram vendidas a preço de banana. Seu hobbie era ele mesmo restaurar os carros que possuia em um galpão que mantinha na Baixada Fluminense. E foi esse aprendizado que lhe deu “bagagem” para sua atividade hoje.
No final da década de 1990 montou sua primeira oficina, na Rua Ceará, no bairro do Estácio, no Rio. Além de cuidar da restauração e manutenção mecânica de automóveis, a empresa possuía um enorme galpão e alugava quarenta e cinco vagas para colecionadores que guardavam ali os seus automóveis. Nos mesmos moldes dos serviços que são oferecidos hoje, o inquilino tinha a sua disposição um serviço de manutenção básica do veículo, que estava sempre com “tudo em dia”, se precisasse sair com o carro. Tudo ia muito bem, até que seu sócio começou a deixar de pagar os aluguéis do galpão para investir na compra de Dodges para restauração. De uma hora para outra a oficina ficou cheia de Darts e Charges. O resultado não poderia ser outro: foram despejados…
Cintra então levou sua oficina para o Jardim Primavera, no antigo empreendimento da família. Lá ficou pouco tempo: além do problema do calor, havia o da falta de segurança. Em 2008 surgiu então a oportunidade de ocupar um dos galpões das instalações de uma falida industria têxtil de Petrópolis, a Fagam. Hoje ele presta serviços de restauração e mecânica para alguns clientes específicos.
— Atualmente eu praticamente não estou mais pegando trabalho de novos clientes. Já tenho meus clientes certos e se não houver trabalho de fora para fazer, tenho muito trabalho em meus próprios carros.
E ele tem toda razão. No dia que o visitamos, encontramos de terceiros:
– Três Willys Interlagos de um único cliente: um Berlineta azul, um Conversível vermelho e um Coupê prata, fabricados em 1963, 1964 e 1965.
– Um Gordini 1968 com motor apimentado e diversos acessórios de época importados da Argentina.
– Um Dauphine 1962 fabricado na França e destinado ao mercado norte-americano. O carro chegou ao Brasil há cerca de oito anos. Mas como estava com a documentação irregular, permaneceu com a Receita Federal até ir a leilão há quatro anos. Esteticamente o modelo é muito parecido com o fabricado no Brasil, mas possui algumas sutis diferenças: friso no teto, velocímetro em milhas, aquecimento interno, rodas com desenho diferente, lanternas dianteiras e traseiras diferentes.
Do próprio Nelson, há muitos carros e consequentemente muitos projetos em andamento. Entre os prontos (ou quase), há um Mustang Hardtop 1968; um Alfa Romeo Alfetta GT 1.8 1974; um raríssimo Peugeot 306 Cabriolet 1995, um Puma GTE 1974; e um Gordini 1965 que foi restaurado pelo próprio Nelson para o produtor cultural Estevão Ciavatta — marido de Regina Casé— mas que acabou voltando às suas mãos depois que Ciavatta sofreu um acidente na coluna que o impossibilitou de usar o carro.
Há ainda dois carros muitos especiais, a Chevrolet C10 1974 e a Carretera Gordini N º 92, cujas histórias são contadas nos boxes desta reportagem, acima e abaixo.
Seus projetos pessoais em andamento ou aguardando para serem iniciados são muitos: dois Renaults franceses 4CV — modelo apelidado no Brasil de “Rabo Quente” por causa do motor traseiro — sendo um deles um raríssimo exemplar fabricado em 1947 — o único com setas ao estilo “bananinha”; um Bianco S, cuja idéia é instalar um motor VW AP; dois Interlagos, sendo um conversível e outro coupê que teve o teto inadvertidamente cortado no passado; uma réplica de Porsche Spyder 550 pertencente a seu filho e em fase de acabamento.
Além dos carros citados, há muitas peças. Motores e carburadores são inúmeros. Há também muitos itens de lataria, com destaque para uma fileira de portas de Gordini. Muita literatura também. Itens que foram sendo reunidos ao longo de uma vida. A oficina de Cintra é uma verdadeira “Disneylandia” para quem se interessa por carros clássicos, principalmente os da marca Renault.
Conversamos com ele por mais três horas e tinha assunto para muito mais…
Texto: Fernando Barenco
Fotos: Fernando Barenco e arquivo pessoal
Como já contamos, no início de sua carreira como piloto, Nelson adaptou para as pistas o Gordini que ganhou de presente de seu pai. O carro depois sofreu uma série de modificações na carroceria e se transformou em uma carretera. A idéia do capô rebaixado ele teve depois de pesquisar sobre soluções aerodinâmicas. Tempos depois ele vendeu o carro para comprar um Interlagos, vindo de Brasília. Nunca mais teve notícias do Gordini azul nº 92.
Há mais ou menos 20 anos, já com oficina, Nelson comprou no Sul um lote de quatro Gordinis e ganhou de “brinde” uma carroceria em péssimo estado. Com ela decidiu fazer uma réplica de sua carretera. Um belo dia, já com o projeto em andamento, em uma de suas andanças por ferros-velhos, Cintra encontrou em Duque de Caxias uma sucata de um Gordini que ele logo concluiu ser de corrida. — O carro tinha uma barra de metal sob o painel, usada só em carros de competição, para não expulsar o parabrisa nas curvas. Consegui descobrir três números do chassi, que copiei. Depois, olhando os antigos documentos da minha carretera constatei que era o mesmo carro! Nelson comprou a sucata e pôs-se a restaura-la, abandonando o projeto inicial de fazer uma réplica. O trabalho levou anos e o carro ficou exatamente igual ao que era no final dos anos 1960.
A réplica inacabada acabou se transformando num Gordini “Street” em dois tons de verde, de duas portas e quatro faróis. Com motor AP 1.9 alimentado por um carburador Weber 40, caixa de Kombi com relação de SP2, o 1964 atinge facilmente os 180 km/h.[/box]
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